Por PHELIPPE TOLEDO PIRES DE OLIVEIRA
O ano de 2023 começou bastante agitado no campo tributário. No apagar das luzes de 2022, foi publicada a MP 1.152/2022 com a reformulação da legislação de preços de transferência com vistas ao seu alinhamento com o padrão da OCDE. Já no início desse ano, o governo anunciou um conjunto de medidas econômicas visando à redução do déficit fiscal, que inclui a retirada do ICMS na base de cálculo do crédito do PIS/COFINS e um novo programa de transação tributária apelidado de “litígio zero”.
Entre as medidas anunciadas, aquela que causou maior alvoroço foi o retorno do voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, conhecido como “CARF”, pela MP 1.160/2023. Para quem não sabe, o CARF é o tribunal responsável pelo julgamento em segunda instância dos recursos administrativos em matéria tributária. Com a alteração, o presidente das turmas, que é um representante da Fazenda, volta a decidir em caso de empate.
Mas outro importante dispositivo da MP 1.160/2023 passou, de certa forma, despercebido. Trata-se de seu art. 2º, que dispõe que a Receita Federal poderá não somente disponibilizar métodos preventivos para autorregularização tributária, como também estabelecer programas de conformidade para prevenir conflitos e assegurar o diálogo com os contribuintes. Esse dispositivo dá o embasamento legal para o “Confia”, programa de conformidade cooperativa em nível federal que está sendo desenvolvido pela Receita Federal.
Os programas de conformidade cooperativa, conhecidos como regimes de “cooperative compliance”, são caracterizados pela maior transparência por parte do contribuinte em troca de segurança jurídica por parte da administração tributária. Esses programas foram desenvolvidos ao longo dos últimos vinte anos, mas ganharam maior notoriedade com o endosso da OCDE e a elaboração de uma série de relatórios ao longo dos anos.
O conceito de conformidade cooperativa só veio com o relatório publicado pela OCDE em 2013 sobre o assunto[[1]], mas a ideia já vinha de mais de uma década antes. A criação do Fórum das Administrações Tributárias e a Declaração de Seul, em 2002, sedimentou o caminho para o estudo sobre os intermediários em 2008[[2]]. Esse estudo destacou a necessidade de uma relação de confiança mútua entre administrações tributárias e contribuintes. A partir de então, seguiram-se uma série de outros relatórios que aprofundaram alguns aspectos específicos.
Programas de conformidade cooperativa vêm sendo implementados por diversos países, cada qual com características e nomes diferentes. A Holanda, uma das pioneiras a adotar programas do gênero, criou, em 2005, um programa denominado “horizontal monitoring”, baseado na transparência, confiança mútua e controles fiscais robustos. Alguns anos depois, em 2008, a Austrália implementou o seu “annual compliance arrangement” que pretendeu estabelecer um maior diálogo com os grandes contribuintes. De lá para cá, vários países fizeram o mesmo.
As administrações tributárias brasileiras demoraram um pouco, mas recentemente aderiram à ideia. Em 2018, o Estado de São Paulo criou o programa “Nos conformes”, com o objetivo de construir uma relação de confiança com os contribuintes[[3]]. O programa privilegia a orientação, a autorregulariazação e a conformidade tributária. Os “bons” contribuintes obtém algumas contrapartidas como procedimento simplificado para apropriação de crédito acumulado de ICMS. Outros Estados seguiram os mesmos passos[[4]].
Em âmbito federal não foi muito diferente. No início de 2018, a Receita Federal disponibilizou uma minuta de Portaria para regulamentar um programa de estímulo à conformidade tributária para consulta pública. O programa, apelidado de “Pró-Conformidade”, propunha um sistema de classificação com benefícios para os “bons” contribuintes, mas, no final das contas, essa minuta foi deixada de lado. Outras ideias surgiram, como o “PAC/PJ”, programa de apoio à conformidade tributária, para orientar as empresas a cumprirem suas obrigações tributárias.
Em abril de 2021, o governo federal criou um Comitê para estabelecer as diretrizes para a criação e o funcionamento do programa de conformidade “Confia”[[5]]. Esse Comitê deveria também criar um fórum de discussão com representantes da sociedade civil. A ideia é que o fórum de discussão auxilie na construção do programa de maneira que seu resultado reflita os anseios não só da administração fiscal como também dos contribuintes. O fórum teve sua primeira reunião no final de 2021. Desde então, seguiram-se várias outras.
No entanto, o fórum de discussão é somente a primeira etapa do programa “Confia”. Uma vez que o programa tenha sido desenhado, será testado como projeto-piloto para sua validação e, se necessário, o seu aprimoramento. Espera-se que o piloto possa ser lançado ainda em 2023 com um grupo pequeno de contribuintes. A partir de então, o programa seria gradualmente ampliado para outros contribuintes[[6]]. Recentemente, criou-se, também, o Centro Confia para coordenação e gestão das atividades do programa[[7]]. Pouco a pouco, o projeto toma corpo.
É nesse contexto que a MP 1.160/2023 incluiu um dispositivo específico prevendo que a Receita Federal poderá disponibilizar métodos preventivos para autorregularização e estabelecer programas de conformidade. Sua exposição de motivos não traz maiores elementos sobre as razões do dispositivo, senão que “objetiva maiores níveis de cumprimento voluntário incentivado das obrigações tributárias”[[8]]. Mas é possível deduzir que se tenha entendido dar um maior respaldo jurídico aos programas de conformidade com expressa previsão legal.
Certamente, ainda haverá muita discussão em relação à polêmica MP 1.160/2023. No entanto, é preciso ter em mente que, ainda que porventura não prevaleça o retorno do voto de qualidade, parece importante que a MP seja votada e aprovada, de maneira a dar o embasamento legal para o programa Confia e eventuais outros programas de conformidade cooperativa em nível federal criados no futuro. Afinal, tais programas são importantes ferramentas para a tão almejada melhoria da relação fisco-contribuinte.
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[[1]] OECD, Co-operative Compliance: A Framework – From Enhanced Relationship to Co-operative Compliance (OECD Publishing 2013).
[[2]] OECD, Study into the Role of Tax Intermediaries (OECD Publishing 2008).
[[3]] São Paulo, Lei estadual 1,320/2018. Disponível em: Lei Complementar nº 1.320, de 06 de abril de 2018 – Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
[[4]] Programas estaduais de conformidade incluem os seguintes: Alagoas (“contribuinte arretado”), Ceará (“contribuinte pai d’égua”), Mato Grosso (“programa de autoregularização”), Minas Gerais (“contribuinte bom pagador”), Piauí (“contribuinte legal”), Rio de Janeiro (“projeto de lei de conformidade tributária”), Rio Grande do Sul (“nos conformes”), Rio Grande do Norte (“contribuinte exemplar”) e Rondônia (“fisconforme”).
[[5]] BR: Portaria RFB n. 28/2021 posteriormente alterada pela Portaria RFB n. 83/2021. Disponível em: Port. RFB Nº 28 – 2021 (fazenda.gov.br).
[[6]] Para mais informações, ver Programa Confia — Português (Brasil) (www.gov.br).
[[7]] BR: Portaria RFB n. 209/2022. Disponível em: Port. RFB nº 209/2022 (fazenda.gov.br).
[[8]] Conforme Exposição de Motivos da MP n. 1.160/2023. Disponível em: Exm-1160-23.pdf (planalto.gov.br).
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