Conformidade cooperativa: o programa Confia e o PL 2384

Por PHELIPPE TOLEDO PIRES DE OLIVEIRA

Historicamente, a relação entre a administração tributária e o contribuinte sempre foi marcada pela desconfiança mútua e o confronto. O foco das administrações tributárias era nas auditorias e fiscalizações, bem assim na consequente aplicação de sanções rigorosas para os contribuintes infratores.

Mais recentemente, as administrações tributárias de diversos países têm buscado adotar alternativas para complementar os tradicionais mecanismos para combater o descumprimento das obrigações tributárias. Entre esses mecanismos estão os programas de conformidade cooperativa conhecidos como “cooperative compliance”.

Os programas de conformidade cooperativa têm por base uma relação de confiança e cooperação mútua entre administração tributária e contribuinte. Possuem como uma de suas principais características a busca por maior transparência por parte do contribuinte em troca de segurança jurídica por parte da administração tributária[1].

Esses programas foram desenvolvidos ao longo das últimas duas décadas, mas ganharam maior notoriedade com o endosso da OCDE e a elaboração de uma série de relatórios ao longo dos anos. Além da OCDE, outros organismos internacionais, tais como o FMI, a Comissão Europeia e a ONU, também auxiliaram na sua promoção.

No sistema tributário brasileiro ainda prevalecem as fiscalizações, a aplicação de penalidades e a cobrança forçada de tributos. Dá-se pouca relevância aos programas de conformidade cooperativa. Mas esse quadro está mudando. As administrações tributárias, nas diversas esferas, parecem estar atenta às iniciativas adotadas mundo afora.

Tanto é assim que, em 2018, a Receita Federal do Brasil divulgou uma minuta de portaria para criar um programa de estímulo à conformidade tributária (Pró-Conformidade). O programa baseava-se em um sistema de classificação dos contribuintes conforme a integridade e veracidade das informações prestadas, a entrega tempestiva de declarações e o pagamento dos tributos pelos contribuintes.

Os contribuintes bem classificados teriam prioridade na análise de demandas perante a Receita Federal, inclusive em relação ao recebimento de restituições, e poderiam regularizar eventuais inconsistências em suas declarações antes de iniciado o procedimento fiscal, hipótese em que não seria aplicada penalidade. Já os contribuintes mal classificados estariam sujeitos a fiscalizações mais rigorosas, com a inclusão em regime especial de fiscalização.

O programa Pró-Conformidade foi mencionado no manual da ONU para prevenção e resolução de conflitos tributários como exemplo de como os programas de conformidade cooperativa poderiam interessar os países emergentes e em desenvolvimento[2]. No entanto, após ser submetida à consulta pública[3], a minuta de portaria não chegou a ser publicada e a ideia foi, de certa forma, deixada de lado, pelo menos por algum tempo.

Nos últimos anos, a Receita Federal vem trabalhando em uma nova iniciativa de conformidade cooperativa em nível federal, o programa Confia. Dessa vez, diferentemente do que aconteceu com o programa Pró-Conformidade, a administração tributária envolveu a participação dos contribuintes e entidades da sociedade civil antes mesmo de propor uma minuta de portaria com os detalhes do programa.

O Confia teve seu pontapé inicial em abril de 2021 com a criação de um Comitê Gestor responsável pela definição das diretrizes do programa. Esse comitê tinha também por atribuição a formação de um fórum de diálogo com entidades e empresas. Um grupo de empresas foi convidado para participar das discussões preliminares e o fórum de diálogo com representantes dos contribuintes foi formado ainda em outubro de 2021.

No entanto, a criação do fórum de diálogo é apenas a primeira de várias etapas necessárias para que o programa entre em funcionamento. Uma vez que o programa esteja desenhado, deverá ser testado como projeto piloto em um número pequeno de empresas com o objetivo de validação e aperfeiçoamento. Finalmente, o programa será gradualmente implementado e posteriormente expandido para um número maior de contribuintes [4].

Mais recentemente, no início de 2023, o governo editou a MP 1160/2023 dispondo em seu artigo 2º que a Receita Federal poderia não somente disponibilizar métodos preventivos para autorregularização tributária, mas também estabelecer programas de conformidade para prevenir conflitos e assegurar o diálogo com os contribuintes[5]. A MP 1160, no entanto, acabou caducando no início de junho de 2023.

No lugar da MP, foi proposto o PL 2384/2023, que tratava em mais detalhes sobre os métodos preventivos para autorregularização tributária e programas de conformidade tributária. Esse projeto previu uma série de medidas de incentivo à conformidade a depender da classificação dos contribuintes, conforme critérios como a regularidade do recolhimento de tributos, exatidão das informações prestadas etc.

Entre as medidas de incentivo à conformidade tributária estavam os procedimentos de orientação prévia, a prioridade na análise de processos administrativos, inclusive quanto a pedidos de restituição ou ressarcimento, o atendimento preferencial na prestação de presenciais ou virtuais e a não aplicação de penalidade administrativa.

A redação original do PL 2384 condicionava a não aplicação da penalidade administrativa à apresentação voluntária pelo contribuinte de atos ou negócios jurídicos relevantes para o qual não haja posicionamento prévio da administração ou ao atendimento tempestivo a requisições de informações solicitadas pela autoridade administrativa.

O PL foi aprovado na Câmara dos Deputados no início de julho de 2023. O cerne do texto original foi mantido. No entanto, a proposta aprovada pela Câmara trouxe algumas alterações em relação ao texto original, entre as quais a delimitação do percentual mínimo de redução da multa aplicável como medida de incentivo à conformidade tributária – 1/3 da multa de ofício e 50% da multa de mora.

Atualmente, o texto encontra-se na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado. Seu futuro, no entanto, pode depender do deslinde de uma outra matéria bastante polêmica contida no projeto: a questão do retorno do voto de qualidade. Espera-se que a matéria seja levada em breve à votação na CAE e posteriormente no plenário. Se aprovado pelo Senado sem alterações, seguirá para sanção presidencial.

Enfim, o programa Confia vai pouco a pouco tomando corpo. Em paralelo, vai sendo construído um arcabouço legislativo que lhe dê respaldo. Na construção desse arcabouço, percebe-se uma preocupação em assegurar que os programas de conformidade cooperativa possuam critérios e incentivos bem definidos na legislação. Tudo isso na busca da tão almejada melhoria da relação fisco-contribuinte.


[1] Para mais informações sobre as diversas facetas dos programas de conformidade cooperativa, conferir: OWENS, Jeffrey; LEIGH PEMBERTON, Jonathan. Cooperative Compliance: A Multi-stakeholder and Sustainable Approach to Taxation. Philadelphia: Wolters Kluwer, 2021. 

[2] UN Handbook on Avoidance and Resolution of Tax Disputes. NewYork: United Nations, 2021, p. 51. 

[3] Conforme Consulta Pública RFB 4/2018. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/audiencias-e-consultas-publicas/2018-1/portaria-que-institui-programa-de-estimulo-a-conformidade-tributaria-pro-conformidade-no-ambito-da-secretaria-da-receita-federal-do-brasil 

[4] Para maiores informações, ver Programa Confia, disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/confia 

[5] Sobre a Medida Provisória 1160/2023, conferir: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-polemica-medida-provisoria-1-160-2023-e-os-programas-de-conformidade-cooperativa-07022023

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/conformidade-cooperativa-o-programa-confia-e-o-pl-2384-22082023

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