Um total de 26 empresas recebeu cada uma ao menos R$ 1 bilhão em benefícios fiscais do governo federal em 2021, totalizando um montante de quase R$ 100 bilhões em impostos que não foram arrecadados, segundo dados da chamada "caixa-preta" das renúncias fiscais abertos neste ano pela Receita Federal. Os números de 2022 ainda não foram divulgados.
O que aconteceu
Os benefícios fiscais somaram R$ 215 bilhões em 2021. Ao todo, 24 mil organizações foram contempladas com isenções de impostos. As isenções se referem aos impostos federais IPI, Imposto de Importação, PIS, Cofins e deduções com benefícios ligados ao Prouni, à Zona Franca de Manaus, isenções por atuação na Amazônia e no Nordeste, dentre outros.
Um total de 26 empresas teve isenções acima de R$ 1 bilhão. A soma das renúncias fiscais dessas empresas totaliza R$ 99 bilhões, quase metade do total dos benefícios fiscais concedidos a empresas naquele ano.
A abertura dos números e beneficiados é uma demanda de Haddad. O ministro da Fazenda determinou a divulgação de informações dos chamados gastos tributários federais. O objetivo é dar mais transparência às isenções e acabar com a "caixa-preta das renúncias fiscais". A Receita Federal divulgou então dados de organizações beneficiadas com isenções fiscais federais em 2021. As informações foram disponibilizadas em cinco tabelas, publicadas entre maio e junho.
Os dados divulgados são só uma parte dos benefícios fiscais. Eles não incluem, por exemplo, os benefícios estaduais, com isenções de ICMS. Segundo a Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), o governo vai abrir mão de arrecadar R$ 641 bilhões em impostos em 2023.
Quais as empresas com maior valor de isenção
As empresas com os maiores benefícios foram Petrobras (R$ 29 bilhões) e Vale (R$ 19 bilhões). As duas estão entre as três maiores empresas de capital aberto do país em faturamento — a outra é a JBS. Mas os benefícios fiscais não são concedidos em proporção à receita das empresas. Para ter direito às isenções, a empresa precisa se enquadrar em alguns requisitos setoriais, de tipo de operação ou estar localizada em alguma região favorecida por incentivos.
Procurada pelo UOL, a Petrobras não comentou. A Vale disse em nota que as informações sobre suas isenções fiscais são públicas, que atua há quase quatro décadas no Norte do país (origem da maior parte de seus benefícios fiscais) e contribui para a região.
Dentre os programas que mais geraram isenções estão o favorecimento ao comércio exterior e incentivos para Amazônia e Nordeste. Os setores com as empresas que tiveram os maiores benefícios são petróleo, mineração, aviação, montadoras, máquinas e insumos agrícolas e tecnologia. Há também órgãos públicos entre os beneficiários, como o Ministério da Saúde.
Boa parte dos benefícios se refere a impostos que serão extintos com a reforma tributária. A reforma acaba com três impostos federais: PIS, Cofins e IPI. Os benefícios relacionados a esses impostos somaram R$ 115,4 bilhões. Com o fim desses impostos, boa parte dos benefícios ligados a eles também deve acabar, diz Rodrigo Orair, diretor de Programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária.
Parte importante, no entanto, não muda com a reforma. A reforma não mexe no Imposto de Importação, cujos benefícios somaram R$ 48,7 bilhões, nem nos benefícios que geram dedução no IRPJ (Imposto de Renda de Pessoa Jurídica). A redução de 75% no IRPJ para projetos na Amazônia e no Nordeste gerou R$ 41 bilhões em isenções.
Tributos que deixaram de ser pagos em 2021
- Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social): R$ 77 bilhões
- Imposto de Importação: R$ 48,7 bilhões
- Redução de 75% no IRPJ para projetos na Amazônia e no Nordeste: R$ 41 bilhões
- IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados): R$ 21,6 bilhões
- PIS (imposto que financia seguro-desemprego e outros benefícios aos trabalhadores): R$ 16,8 bilhões
Mais transparência
A divulgação dos dados dá mais transparência aos benefícios fiscais. O acesso a essas informações permite que a sociedade avalie se esses incentivos fazem sentido e trazem o retorno esperado, diz Eduardo Fleury, especialista em direito tributário e sócio do FCR Law.
Com a reforma tributária, a transparência aumenta e acabam as distorções do modelo atual. Alguns dos benefícios foram criados para garantir a não cumulatividade de impostos. Porém, no meio do caminho ocorrem distorções, que fazem com que algumas empresas recebam mais e outras recebam menos benefícios do que deveriam, diz Fleury. A reforma acaba com isso. A empresa vai tomar o crédito que está na nota fiscal.
Outros incentivos precisarão constar no orçamento. O texto da reforma veda incentivos fiscais via imposto, salvo as exceções que constarem na própria reforma. Com isso, se o governo federal ou governos estaduais quiserem incentivar uma empresa, o incentivo deverá ser em dinheiro e constar do orçamento, o que dá mais transparência ao benefício, diz Fleury.
O imposto deve ser pouco usado como instrumento de incentivo. Em geral, quando se incentiva via imposto sobre produto cria-se uma distorção de preços, o que impacta a decisão de compra do consumidor Eduardo Fleury, especialista direito tributário e sócio do FCR Law
Benefícios para Amazônia e Nordeste
Os benefícios para empresas na Amazônia e no Nordeste estão entre os mais relevantes. A política que permite reduzir em 75% o IRPJ dessas empresas levou a um gasto tributário de R$ 41 bilhões em 2021 — cerca de 40% disso foi para a mineradora Vale e sua subsidiária Salobo Metais. Os benefícios para empresas localizadas na Zona Franca de Manaus também são relevantes e estão entre os principais para empresas como Samsung e LG.
Para tributarista, é preciso entender se a atividade seria viável sem o benefício. "No caso da Vale, o minério está no Pará. A pergunta a se fazer é: Essa não seria uma atividade viável normalmente? Pode ser que o Brasil já tenha uma vantagem comparativa clara nesse setor e não precisaria dar esses incentivos", diz Fleury.
Isenções para importações e exportações
Políticas voltadas à importação e exportação custaram bilhões. Apenas uma das linhas que trata de regimes aduaneiros especiais levou à não arrecadação de R$ 35 bilhões. Já o Recof, regime que suspende impostos para mercadorias que passarão por industrialização para serem destinadas à exportação, custou R$ 16 bilhões. O regime foi uma das principais fontes de incentivos para GE Celma, Fiat, CNH Industrial e General Motors.
Com a reforma tributária, parte desses benefícios deixa de fazer sentido. Os regimes especiais de importação e exportação existem na maior parte das vezes para corrigir distorções do modelo atual e vão acabar porque deixam de fazer sentido no novo modelo, diz Rodrigo Orair, do Ministério da Fazenda.
Hoje as empresas têm dificuldade de resgatar créditos de tributos pagos na cadeia. No novo modelo não vai ter essa dificuldadeRodrigo Orair, diretor de programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária, do Ministério da Fazenda
Montadoras e aviação
Dentre as 26 empresas com mais de R$ 1 bilhão em benefícios estão sete montadoras de carros, ônibus ou caminhões. São elas: Fiat, General Motors, Volkswagen, Mercedes-Benz, Scania, Renault e Volvo. Os principais benefícios do setor envolvem isenções voltadas à importação e exportação.
Para tributarista, os benefícios ao setor precisam ser avaliados pelo poder público. Fleury cita um relatório publicado em abril pelo Tribunal de Contas da União. O documento concluiu que as Políticas Automotivas de Desenvolvimento Nacional custaram R$ 50 bilhões ao país desde 2010, mas " entregam pouco de desenvolvimento regional aos territórios beneficiados". Segundo o relatório, essas renúncias fiscais chegam a custar cerca de R$ 34 mil mensais por emprego gerado.
Aviação tem cinco empresas com mais de R$ 1 bilhão em benefícios. São elas: GE Celma (unidade de aviação da GE no Brasil), Latam, Gol, TAP Manutenção e Embraer (Yaborã). Os principais benefícios do setor são a admissão temporária (que permite a permanência de bens estrangeiros no país, por prazo determinado, com suspensão de tributos) e regimes de importação especiais. Edison Fernandes, sócio do escritório FF Law, diz que a admissão temporária é frequente no setor de aviação pois as empresas costumam alugar suas aeronaves.
Petróleo e agronegócio
A lista tem quatro empresas que atuam no setor de petróleo: Petrobras, Bram Offshore, Modec, e Brasdril. O principal benefício do setor é o Repetro, programa que isenta de imposto importações de bens destinados à exploração de petróleo e gás natural. Segundo os dados da Receita, ele custou ao menos R$ 17 bilhões em 2021.
Benefício ao setor pode continuar mesmo com a reforma. Fleury diz que, em alguns casos, essa isenção evita a bitributação e, que em um sistema tributário mais "racional", o benefício seria dispensável. Segundo Orair, do Ministério da Fazenda, ainda não é certo se o Repetro continua após a reforma tributária, devido às características do setor.
Lista tem quatro empresas de insumos e máquinas para o agronegócio. São elas: CNH Industrial, Yara Fertilizantes, Mosaic Fertilizantes e Syngenta. Os principais benefícios são a redução de imposto para importação de fertilizantes e defensivos agrícolas e o Recof. Fernandes lembra que a reforma tributária manteve benefícios para o agronegócio. Dentre eles estão taxa zero para a cesta básica, alíquota reduzida para insumos e produtos agrícolas e isenção de imposto para o produtor rural com receita anual de até R$ 3,6 milhões.
O que dizem as empresas
A Petrobras não comenta. A Vale disse em nota que as informações sobre suas isenções fiscais são públicas, que atua há quase quatro décadas no Norte do país e contribui para a região.
A GE Celma diz que o benefício fiscal permite que ela importe motores e peças que passarão por reparos no Brasil e depois serão exportados. A Latam diz que a divulgação dos dados é positiva, "pois reforça a transparência de dados" e "dá a oportunidade de empresas como a Latam demonstrarem o quanto investem no país". A empresa diz que investiu R$ 17 bilhões no Brasil em 2021. A TAP Manutenção fechou a operação no Brasil em 2022. Gol e Embraer não comentam.
A Fiat diz que as políticas de desenvolvimento regional têm "um sistema claro de governança, com transparência em suas regras e objetivos." Também afirma que o setor automotivo "é protagonista do desenvolvimento econômico e tecnológico do país, responsável por 20% do PIB da indústria".
A Volkswagen diz que os benefícios recebidos pela empresa correspondem a cerca de um terço do valor informado nas tabelas da Receita. Também diz que os benefícios estão ligados a regimes aduaneiros e acordos de comércio com outros países, e são de uso geral da indústria, "não conferindo vantagens competitivas específicas para a Volkswagen do Brasil". Também afirma que parte significativa do montante é referente a mudança do prazo de recolhimento de tributos. A empresa reforça que cumpre suas obrigações fiscais e regulatórias.
A Renault disse que a concessão de benefícios fiscais e aduaneiros ocorre para "qualquer empresa do território brasileiro que atenda aos requisitos determinados pela legislação" e que os valores em questão representam um "custo evitado com atividades de importação e exportação de veículos e peças". A Mercedes-Benz diz que "sempre conduziu adequadamente seus temas fiscais junto às autoridades devidas".
A Volvo disse que "os benefícios concedidos ao setor de importação foram importantes para a propagação da tecnologia dos veículos híbridos e elétricos e construção de um novo segmento no Brasil". Diz ainda que "vê de forma positiva a divulgação de dados pela Receita Federal". A GM não respondeu. A Scania não comenta.
A Yara Fertilizantes diz que opera de acordo com a lei e que os benefícios fiscais recebidos estão disponíveis para consulta. Também diz que que eles são "um recurso importante para garantir o fornecimento de insumos ao agricultor e, consequentemente, a competitividade do produto agrícola brasileiro".
A Syngenta diz que a lei que prevê alíquota zero de Pis /Cofins para determinados defensivos agrícolas vale para todas as empresas do setor. "Portanto não há concessão de isenções fiscais à Syngenta individualmente", diz. Também diz que teve incentivos de outros programas, como Lei Rouanet e PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador), e nenhum deles se trata de benefício concedido à empresa individualmente.
A Mosaic Fertilizantes diz que os benefícios "não são usufruídos pela empresa, mas concedidos aos setores de insumos agrícolas e alimentos". Também afirma que as isenções são "mecanismos que visam promover a redução do custo da cesta básica, conforme políticas estabelecidas pelo governo". A CNH Industrial não respondeu.
A Samsung diz que atende a uma série de requisitos para ter direito aos benefícios da Zona Franca e Manaus, entre eles cumprir o mínimo de compra de componentes locais em sua produção e investir um percentual de seu faturamento em pesquisa e desenvolvimento. A LG não respondeu.
Modec, Caterpillar e Eletronorte não responderam. A reportagem não conseguiu contato com a Brasdril, nem com a Bram Offshore.
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