Um passo no rumo da luz

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O Brasil reduziu o trabalho ilegal e a sonegação de impostos, mostra um estudo inédito sobre os últimos dez anos. Eis uma evolução vital para o país ser mais produtivo

ANA LUIZA HERZOG E HUMBERTO MAIA JUNIOR

NO ÚLTIMO DIA 27, A LOJAS RENNER, MAIOR REDE DE VAREJO DE MODA DO PAÍS, COM RECEITA ANUAL DE 4 BILHÕES DE REAIS, esteve sob os holofotes por uma razão indesejada. Naquele dia, tornou-se pública a informação de que fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego haviam flagrado, duas semanas antes, numa oficina de costura em São Paulo que atendia dois de seus fornecedores – as confecções Kabriolli e Betilha –, cerca de 30 bolivianos trabalhando em condições consideradas degradantes. Eles viviam em um alojamento precário fornecido pela oficina e cumpriam jornadas exaustivas de mais de 14 horas. A Renner, que repudiou o ocorrido por meio de um comunicado oficial, não foi a primeira varejista no país a ter a marca associada ao vergonhoso tema do trabalho desumano. Algumas de suas concorrentes — entre elas as brasileiras Pernambucanas e Marisa, e a espanhola Zara — também estiveram na berlinda pela mesma razão. Dificilmente, porém, a Renner será a última a ter a reputação arranhada. E isso se explica por duas razões. A primeira delas é que episódios como esse ainda acontecem porque o nível de ilegalidade no setor de vestuário, apesar de ter mostrado melhorias, ainda é elevado. Já o segundo motivo é positivo: situações inaceitáveis como a das confecções ilegais têm vindo à tona porque o governo intensificou a fiscalização contra a ilegalidade no trabalho — é uma boa notícia, similar à que representam as ações da Polícia Federal e do Ministério Público lançadas para desvendar os meandros da corrupção no escândalo do petrolão. De 2004 para cá, o número de trabalhadores monitorados a cada ano pelo Ministério do Trabalho aumentou 77% e chegou a 39 milhões em 2013. Como consequência de apertos como esse, o cenário da chamada economia "informal" — um eufemismo que encobre também uma série de outras práticas fora da lei, como sonegação de impostos, falsificação, contrabando e burla a normas sanitárias — vem regredindo no Brasil. Estudo inédito obtido por EXAME, feito pela consultoria McKinsey a pedido do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo, entidade mantida pelas maiores redes do comércio no país, aponta uma queda na informalidade do emprego no Brasil de 14 pontos percentuais, de 54% para 40% dos trabalhadores nos últimos dez anos. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, só mais um país registrou redução semelhante: a África do Sul. "A análise de diferentes métricas nos permite relacionar a queda no emprego informal com uma redução no nível de ilegalidade da economia como um todo", afirma Willliam Jones, consultor da McKinsey e um dos autores do estudo.

Embora seja impossível determinar com exatidão o grau de informalidade de uma economia, outro levantamento endossa a tese de que o país evoluiu nessa seara. O Instituto de Ética Concorrencial e o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas calculam o que denominam "economia subterrânea" — toda a produção de bens e serviços não declarada ao governo. Para fazer o cálculo, são consideradas variáveis como trabalho informal, volume de moeda em circulação, renda e taxa básica de juro. A estimativa é que hoje a economia subterrânea seja equivalente a 16,2% do produto interno bruto — em 2004, representava 21%.

INFORMALIDADE X PRODUTIVIDADE

Há exatos dez anos. EXAME também usou um estudo da consultoria McKinsey. em parceria com o Etco, para produzir uma reportagem de capa emblemática sobre o tema da ilegalidade. Na época, a praga assolava o país de maneira que parecia irreversível e simplesmente impedia que ele se tornasse mais produtivo. Ilegalidade e baixa produtividade caminham juntas. Um raciocínio simples mostra quanto essa relação é intrincada: um negócio que sonega impostos, na maioria das vezes, também é aquele que, para se proteger do Fisco, não registra os funcionários. Como essa prática reduz artificialmente o custo dos profissionais e de sua ociosidade, há pouco estímulo para tomá-los mais eficientes por meio de treinamentos, investimentos em tecnologia ou melhorias de processos. "Combater a informalidade é obrigação para um país que quer e precisa se desenvolver", diz o empresário Flavio Rocha, sócio da rede de varejo Riachuelo e presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo. "Só empresas formais podem crescer, investir e ter ganhos de produtividade."

Curiosamente, os responsáveis pela mudança para melhor não são os fatores que os especialistas no assunto creditariam como responsáveis usuais por cortar a informalidade nas economias. Redução da carga tributária, por exemplo? Em hipótese alguma. Os impostos no Brasil continuam altíssimos e somam 37% do PIB, fatia próxima à de países desenvolvidos. Essa carga, sem sombra de dúvida, incentiva muitos negócios a permanecer nas sombras. "Sei que eu sou ilegal, mas não partilho minha renda com o governo porque, mesmo com tantos impostos, ele não favorece o empresário médio em nada", diz o dono de uma funilaria da periferia paulistana que opera há décadas na ilegalidade. Ao longo dos últimos dez anos. tampouco ficou menos penoso empreender e gerenciar uma empresa no país. No conhecido ranking Doing Business, elaborado pelo Banco Mundial, que retrata a qualidade do ambiente de negócios em 189 economias, o Brasil ainda ocupa a 1202 posição. Se considerado apenas o quesito "pagamento de impostos", estamos ainda mais atrás: na 177ª.

O que diabos, então, fez diminuir a ilegalidade? Segundo a McKinsey, uma "tempestade "quase" perfeita" de alguns fatores. Entre os que são merecedores de maior destaque estão o aumento do cerco do Fisco aos sonegadores por meio da introdução de medidas como o Sistema Público de Escrituração Digital (Sped). a nota fiscal eletrônica e a substituição tributária, que mudou a forma de cobrança do ICMS. imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços. "Na prática, o que aconteceu é que o governo mirou o aumento da arrecadação e acabou acertando também a ilegalidade", afirma Jones, da McKinsey. A substituição tributária beneficiou vários setores, aponta o estudo, como o varejo de alimentos e o de eletroeletrônicos. Mas em nenhum deles os impactos positivos da medida são tão nítidos como no de farmácias. Em 2004, as maiores redes de São Paulo respondiam por 25% do faturamento estimado do setor, mas recolhiam metade do ICMS arrecadado pelo estado. Matematicamente, isso só é possível porque alguém não estava pagando o que devia. "As farmácias médias e pequenas sonegavam o imposto adoidado, porque a receita não tem braços para fiscalizá-las, e o fardo caía apenas sobre nós", afirma Eugênio de Zagottis, vice-presidente de planejamento da Raia Drogasil. Coin a introdução da substituição tributária, em 2008, o governo transferiu para os fabricantes de medicamentos o recolhimento do ICMS dos distribuidores e das farmácias. que passaram a embuti-lo no preço dos produtos. Feito isso, as grandes redes passaram a competir em pé de igualdade com as farmácias informais na oferta de preços aos consumidores. O resultado? Primeiramente, um salto de escala. Em 2003, as cinco maiores redes do país faturavam juntas 20 bilhões de reais e tinham só 15% de participação de mercado. No ano passado, a participação das cinco maiores chegou a 27%, com receita de 79 bilhões de reais. O mais gritante, porém, é o ganho de eficiência que a redução da ilegalidade proporcionou às grandes redes. Hoje, um funcionário dos cinco maiores varejistas de remédios vende por ano, em média, 272 000 reais — ante 128 000 do funcionário de uma farmácia qualquer, uma diferença de 113%. "A dinâmica do setor mudou completamente", diz Zagottis. "Competimos hoje num ambiente de negócios bem mais justo."

Mesmo em setores do varejo nos quais a briga travada contra a informalidade tem se provado mais árdua, os ganhos de produtividade são gritantes. No de vestuário, o funcionário de uma das cinco maiores cadeias varejistas gera. em média. 523 000 reais por ano — ante 58000 obtidos numa loja qualquer. Uma diferença que poderia ser até maior se os muitos obstáculos à formalização do setor fossem transpostos. "Nossa cadeia é altamente fragmentada. muito terceirizada, intensiva em mão de obra e com índices baixíssimos de profissionalização", afirma Edmundo Lima, diretor conselheiro da Associação Brasileira do Varejo Têxtil. "Mas estamos nos empenhando para torná-la mais formal e responsável socialmente."" Não se trata de pura retórica. a despeito dos escândalos de trabalho precário que, de tempos em tempos, envolvem o setor e são tornados públicos. Desde 2011, quando virou notícia no Brasil e no mundo ao se ver envolvida num desses episódios aqui, a espanhola Zara já investiu 14 milhões de reais no país em três frentes: apoio a imigrantes, auditorias frequentes nos fornecedores e, sobretudo, ações para ajudá-los na formalização e na profissionalização. Nesse caso estão as confecções. em geral de porte médio, e as também chamadas "subcontratadas", as pequenas oficinas de costura em que as infrações às leis trabalhistas costumam se materializar. "Sabemos que será necessário estender esse trabalho ainda por muitos anos para obter resultados relevantes", diz um porta-voz do Inditex, o grupo dono da Zara, que pediu para não ser identificado. O posicionamento da associação, porém, é que. isoladamente, os esforços das grandes empresas não serão suficientes para botar ordem nas confecções e nas pequenas oficinas. "Só uma redução da carga tributária permitiria tirar todas as empresas da ilegalidade", diz Lima.

INCLUSÃO DIGITAL

Não são poucos os setores da economia que engrossam esse discurso, mas a verdade é que pouquíssimas vezes tis autoridades em Brasília premiaram o contribuinte com algum alívio tributário. Quando o fizeram, porém, geraram benefícios que alcançaram consumidores, empresas e até o próprio setor público. Um dos exemplos mais notórios é o da chamada MP do Bem, medida provisória de 2005 que diminuiu os impostos que incidiam sobre os computadores e estimulavam os consumidores a recorrer ao mercado cinza — composto de máquinas montadas com componentes ilegais e software pirateado. Em pouco tempo, a medida não só deu fim à pirataria como ampliou a inclusão digital. aumentou a arrecadação para os cofres públicos e ajudou dezenas de negócios formais a ganhar mercado e gerar empregos. "Até a MP do Bem éramos uma empresa de 350 funcionários que vendia máquinas para governos e alguns poucos negócios", diz Helio Rotenberg, presidente da fabricante de computadores Positivo Informática, com sede em Curitiba. "Hoje, graças à redução dos impostos, temos cinco fábricas e cerca de 4 000 funcionários."

No mundo todo, muitas pesquisas mensuram quanto a informalidade é um obstáculo aos ganhos de produtividade dos países. No Brasil, um estudo recente e inédito do pesquisador Gabriel Ulyssea, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, revela quanto a diminuição dessa ilegalidade poderia beneficiar a economia brasileira. Segundo ele, uma redução de 20 pontos percentuais nos impostos sobre a folha de pagamentos, que hoje chegam a 39% dos salários, reduziria a informalidade do trabalho em 12 pontos percentuais. Só isso elevaria 7% a produtividade do país. Além da diminuição da carga fiscal, o governo impulsionaria o avanço da formalidade se racionalizasse a burocracia. Ao criar o Simples Nacional — sistema que unificou o recolhimento de oito tributos federais, estaduais e municipais e reduziu a carga de impostos de 13% a 67%, dependendo do setor —, o governo realizou uma espécie de reforma tributária para as micro e pequenas empresas, que faturam até 3,6 milhões de reais por ano. Atualmente, cerca de 4,8 milhões de empresas estão enquadradas nessa modalidade. O problema é que o Simples, pela maneira como foi concebido, já começa a gerar distorções. Para não perder os benefícios oferecidos, os donos dos negócios que o utilizam e crescem têm trilhado caminhos como limitar a expansão, obter um segundo e um terceiro registro de empresa no nome de um parente ou amigo ou simplesmente sonegar receitas que excedam seu limite. A boa notícia é que o governo parece estar ciente do problema: "A pequena empresa que sai do Simples simplesmente não aguenta o aumento da carga tributária e da burocracia", diz Guilherme Afif Domingos, ministro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa. De acordo com ele, o governo tem um projeto com mudanças para tentar resolver o problema, entre as quais o aumento do limite de faturamento no Simples. Em breve, a bola estará com o Congresso.

Independentemente do quanto o governo vai ajudar ou atrapalhar a luta contra a ilegalidade, o fato é que alguns aspectos devem continuar impulsionando avanços daqui para a frente. Um deles é a evolução da escolaridade dos trabalhadores. Desde 2003, a parcela deles com ensino fundamental completo passou de 66% para 80%, enquanto a fatia com ensino médio concluído cresceu de 46% para 64%. E o que estudos recentes indicam é que os profissionais com mais estudo são menos suscetíveis a aceitar empregos informais. Além disso, há uma percepção de que muitos empreendedores estão menos dispostos a correr o risco de ser informais. Não custa lembrar: nos últimos seis anos mais de 400 empresas abriram o capital ou receberam dinheiro de fundos de investimento — algo só permitido aos negócios formais. "Hoje é muito mais comum encontrar empresas sem contingências relevantes do que há dez anos", afirma Paulo Silvestri, ex-diretor de private equity da gestora de recursos Rio Bravo, hoje à frente da Mapa Capital, consultoria que também compra participações em empresas. A ToLife, do mineiro Leonardo Lima de Carvalho, que desenvolve tecnologias para o setor de saúde, é um exemplo. O negócio já nasceu quase 100% formal em 2009. Entenda o "quase": a empresa sempre pagou com rigor os impostos, mas seus principais executivos recebiam salários como pessoa jurídica. A decisão de também registrá--los em carteira veio no fim de 2012, quando Carvalho percebeu que havia chegado a hora de ir ao mercado buscar um investidor para ajudar na expansão do negócio. "Quem investiria na empresa se continuássemos com esse passivo?" Já o negócio da paulista Tatiane Lobato, a Magic Clean, hoje uma rede de quatro lavanderias, nasceu em 2007 e permaneceu na informalidade por dois anos. A adesão ao Simples aconteceu em 2009, quando esse status impediu a empreendedora de prestar serviços para uma empresa de maior porte que exigia a nota fiscal. "Naquele momento, percebi que a informalidade tinha deixado de valer a pena", diz Tatiane. Ao que tudo indica, mais e mais brasileiros, a exemplo de Tatiane, estão fazendo a mesma descoberta.

Revista Exame via http://www.asmetro.org.br/portal/21-clipping/5005-revista-exame-um-passo-no-rumo-da-luz-nao-vai-sair-barato

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