Por Antônio Sérgio Valente

Nos artigos precedentes diagnosticamos vários problemas no atual sistema tributário brasileiro, em vários tributos.

Estudaremos, a partir deste agora, algumas propostas que podem, por um lado, corrigir injustiças e distorções fiscais, e por outro, de forma compensatória, fechar portas, janelas, claraboias e chaminés por onde os tributos se esvaem.

Os objetivos são: simplificar o sistema; tornar a arrecadação mais consistente e previsível; mitigar as brechas de evasão legal e travestida de legal; reduzir o cardápio de evasões ilegais; harmonizar os entes federados através de uma regra dinâmica que leve em conta as suas pujanças econômicas efetivas e recíprocas; neutralizar a perda de arrecadação agregada decorrente da guerra fiscal; eliminar incertezas jurídicas e comprimir custos de adimplemento da obrigação tributária; criar ambiente favorável à concorrência livre e leal entre agentes econômicos; estimular o investimento produtivo e a expansão industrial.

As propostas serão tópicas, por tributo. Junções de impostos não foram cogitadas, ante a premissa de que não caberiam numa reforma expressa, urgente, específica, pois exigiriam a total reconstrução do sistema tributário e do pacto federativo, com redefinição de partilhas, competências e responsabilidades orçamentárias, requisitos que não encontrariam abrigo político na atual quadra da nossa história.

Iniciaremos pelo tributo que nos parece o mais deformado nos últimos anos, o mais complexo e repleto de distorções, injustiças e vãos por onde se esvai — o ICMS.

ICMS: Compensando Distorções

Dentre as distorções diagnosticadas no ICMS, nos artigos anteriores desta série, duas se destacam: a ST – Substituição Tributária, nos moldes deformados e ampliados a partir de 2008, e o método de apuração do IVA impuro, que não tributa o efetivo valor agregado em cada período (defeito congênito do ICMS brasileiro).

Observe-se que a primeira distorção — ST — atua numa das pernas do ICMS, a do débito. Ela antecipa débitos do futuro, às vezes do futuro próximo, às vezes do remoto. Já aqui começam as distorções. Ela cobra o tributo antes do fato gerador. E como nem sempre o fato gerador ocorre da forma prevista, na UF prevista e com a margem prevista, traz complexidades, injustiças e deformações ao tributo.

Já a segunda distorção — IVA impuro — torce a outra perna do ICMS, a do crédito. Ela antecipa créditos que pertencem ao futuro, às vezes ao futuro próximo, às vezes ao futuro remoto. Permite que o crédito sobre uma mercadoria que ainda não foi vendida, que talvez o seja no mês seguinte ou só um ano depois, seja compensado no presente. Ela atrasa o repasse ao erário do imposto cobrado do consumidor pelo comerciante. Ela deforma a apuração do tributo relativo a cada mercadoria, de cada operação, em cada período. Ela não apura imposto sobre o efetivo valor agregado.

Note-se que tais distorções agem em sentidos contrários: uma antecipa débitos e a outra antecipa créditos. Uma torce para lá, a outra para cá, e o tributo fica totalmente desengonçado. Essas torções aleijam o ICMS.

Se a inversão de sentidos não possibilitasse evasões ilegais, legais e travestidas de legais, se não interferisse na vida econômica das empresas, se não afetasse a livre concorrência entre os agentes econômicos, se não criasse injustiças fiscais escandalosas, se não trouxesse uma enorme complexidade ao sistema tributário, se não elevasse o custo de observância das normas, os problemas estariam resolvidos, uma compensaria a outra. Mas os problemas citados existem, já foram apontados nos artigos anteriores desta série, e também na intitulada Substituição Tributária: Robin Hood às Avessas.

Todavia, essas mesmas distorções que deformam o tributo, compensam-se em parte, de modo que se forem extirpadassimultaneamente, a cirurgia não causará grandes transtornos operacionais à maioria dos agentes econômicos, só alguns poucos terão efêmeros e superáveis sintomas. Por outro lado, o corpo do ICMS terá outra qualidade de vida, ganhará outra postura, uma elegância e uma firmeza no andar que jamais teve no Brasil. Embora sob a tutela dos entes federativos, pode assumir ares de IVA puro, de imposto sobre o efetivo valor agregado.

Vejamos como isto pode ser feito e o cenário que teríamos.

Os Termos da Proposta

De um lado, elimina-se a ST, a antecipação tributária, para a quase totalidade das mercadorias, com exceção de um ou outro item que tenha ou venha a ter preço prefixado para venda ao consumidor, ou que tenha preço que não oscile em função do fabricante ou da marca. Sequer bebidas, sorvetes, automóveis, pneus e remédios entrariam na lista. Muito menos alimentos, perfumaria, brinquedos, colchões, etc. A lista de exceções cabíveis em eventual ST seria mínima, menor até do que a existente antes de 2008.

De outro lado, bloqueia-se o aproveitamento do ICMS nos estoques até o momento da efetiva saída das mercadorias. Istoexclusivamente para os comerciantes atacadistas e varejistas, inclusive os destas categorias que também importam (do exterior, explique-se, para não confundir com importações de outras UFs). Ficam fora desta regra:

a) Por definição, os optantes pelo Simples Nacional (eis que não têm direito ao crédito do ICMS, pagam em função do faturamento); e

b) As indústrias, ante a natureza lenta do processo fabril, e como incentivo à produção nacional. Com uma ressalva: mercadorias para mera revenda, importadas por indústrias, ainda que sejam reembaladas no Brasil, submeter-se-ão à regra. Isto por razões de isonomia com outros importadores e comerciantes, para evitar burlas, e para cingir o incentivo do crédito periódico, no mês de aquisição, sem bloqueio da variação de estoques, exclusivamente às indústrias que de fato produzem no Brasil. Os demais teriam direito ao crédito, claro, seja procedente de dentro do país ou recolhido por guia especial na liberação portuária, mas tais créditos ficam bloqueados até o mês da efetiva saída da mercadoria; ou seja, apura-se o imposto sobre o efetivo valor adicionado.

Em outras palavras, só seriam afetados os comerciantes de médio e grande porte, pois os pequenos estão todos no SN, e a indústria não seria afetada.

E mesmo no grupo dos atingidos, só os que se locupletam das distorções e brechas atuais é que sentiriam os efeitos da medida, pois não mais as teriam à disposição — mas isto seria muitíssimo justo, convenhamos.

Efeitos Práticos

As medidas causariam três efeitos básicos sobre os comerciantes de médio e grande porte não enquadrados no Simples Nacional, no mês da remodelação, a saber:

a) Os comerciantes que operam com mercadorias fora da ST teriam de estornar os créditos contidos em seu estoque final (EF)e sem direito ao crédito do estoque inicial (EI), eis que este foi aproveitado nos meses de entrada das mercadorias. A partir do segundo mês, fariam o crédito do ICMS no EI (EF do mês anterior) e o débito (por estorno de crédito) do ICMS no EF do mês de apuração, bem como os débitos por saídas do mês e os créditos por entradas do mês. Na prática, passariam a pagar o ICMS sobre as mercadorias vendidas em cada mês, isto é, o ICMS sobre o valor adicionado a essas mercadorias na etapa comercial.

Tais comerciantes certamente sentirão alguma falta de ar, pequena ou um pouco maior em função do volume de seus estoques. Será um sintoma muito parecido com o que outros comerciantes experimentaram quando suas mercadorias foram enquadradas na ST. Nada impede que este efeito seja parcelado, como o foi o da ampliação da ST, a partir de 2008.

b) Já os comerciantes que operam com mercadorias da ST (hoje, a maioria), teriam direito ao crédito do ICMS total(operações próprias dos fornecedores e da etapa ST) contido no EI do mês de remodelação do tributo, eis que tais créditos não foram aproveitados por ocasião das entradas (hoje é proibido o crédito relativo a mercadoria da ST). Passariam a fazer créditos mensais sobre as compras pós-remodelação, e estas seriam a valores sem ICMS-ST. Em contrapartida, teriam de debitar o ICMS sobre as saídas do mês e de estornar o crédito sobre o EF. Este estorno é o lançamento que bloqueia o ICMS nos estoques. De modo que em cada mês pagarão apenas o ICMS sobre o valor adicionado às mercadorias nele vendidas.

No mês da remodelação, não sentirão nenhum efeito negativo das mudanças. Pelo contrário, se a margem prevista pelo IVA-ST estava próxima da efetiva, e se houver nesse mês mera reposição de estoques, é possível que sintam até uma folga adicional, pois o crédito sobre o EI inclui a parcela retida por ST, mas o estorno do crédito sobre o EF leva em conta apenas o ICMS sobre o custo de aquisição (sem a margem futura). Portanto, dependendo da diferença entre a margem do IVA-ST atual e a margem efetiva, bem como do volume e variação dos estoques, é muito provável que tais empresas apresentem saldos credores no mês da remodelação.

c) Como a maior parte dos estabelecimentos comerciais de médio e grande porte atualmente opera com mercadorias da ST e de fora da ST, os efeitos no mês da remodelação mais ou menos se compensariam, dependendo da preponderância de cada situação em cada contribuinte. Basta pôr na equação os efeitos da falta de fôlego financeiro mencionada no item “a”, com o excesso de fôlego do item “b”.

d) Portanto, sem dúvida nenhuma, a falta de fôlego financeiro agora será bem menor do que a verificada quando da ampliação da ST para uma infinidade de grupos de mercadorias (sobretudo no período de 2008 a 2010), em parte em decorrência da compensação de efeitos mencionada no parágrafo anterior, e em grande parte porque a reforma não alcança negativamente o fôlego financeiro das empresas do Simples Nacional, pelo contrário, as suas compras não mais seriam oneradas com a parcela de ICMS-ST, e não teriam de efetuar estorno nenhum, embora passem a incluir em sua base de cálculo mensal (tributável à alíquota da respectiva faixa de faturamento) o montante das vendas outrora sujeitas à ST. Lembre-se que, quando se implantou a ST, a antecipação tributária as atingira em cheio, inclusive no tocante ao ICMS dos estoques, que teve também de ser recolhido por ST, em guias à parte. Embora com direito a parcelamento, aquilo realmente retirou fôlego financeiro das pequenas empresas. Mas agora, nesta remodelação, esse efeito não aparece.

e) As indústrias permanecerão com o direito ao crédito periódico, ou seja, por ocasião das entradas de insumos, de modo que não serão afetadas, exceto indireta e positivamente, na medida em que não precisarão mais reter o ICMS por ST de seus clientes, não precisarão enfrentar a burocracia de inscrições nas demais UFs, estarão dispensadas de apurações e fiscalizações estaduais do Brasil inteiro, e não sofrerão concorrência predatória das indústrias que se valem de evasão travestida de legal, via distribuidores testas-de-ferro, nem daquelas cujas cadeias produtivas praticam margens brutas acima da média porém na ST são tributadas pela média.

Enfim, o setor industrial, em seu conjunto, só terá a ganhar com o fim das distorções. Perderão, isto sim, as indústrias que fazem uso das brechas atuais (as que praticam preços efetivos acima da média ponderada e distribuição por testas-de-ferro) — mas estas é bom que percam, purifica-se o mercado, afasta-se a concorrência predatória, e se recupera o senso de justiça fiscal.

f) É bem possível que, para o tesouro público, os ganhos e perdas mais ou menos se compensem no mês da implantação, talvez até com mais perdas iniciais do que ganhos, a depender dos estoques de mercadorias na ST e fora da ST. Mas a correção das distorções, sobretudo no que tange ao IVA puro, certamente implicará na mitigação expressiva dos saldos credores continuados e dos pífios saldos devedores, não há dúvida sobre isto.

Esta cirurgia na deficiência física do ICMS, em médio prazo, tende a afetar positivamente a arrecadação, sobretudo se for combinada com o ICMS federativo nacionalizado.

Mas esta proposta já é assunto para o próximo artigo.

Até…

http://blogdoafr.com/articulistas/antonio-sergio-valente/reforma-tributaria-urgente-9/

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