Receita Federal do Brasil: Desafios para a realização de um projeto de cooperação fiscal aprendendo com a experiência nacional e internacional

Mariana Pimentel Fischer Pacheco*


1 - Introdução: Aprendendo com a experiência brasileira e de outros países para pensar projetos viáveis para a Receita Federal do Brasil

Este relatório parcial de pesquisa tem o escopo de expor o andamento do projeto "Receita Federal do Brasil: Desafios para a Realização de um Projeto de Cooperação Fiscal (Aprendendo com a Experiência Nacional e Internacional)", em desenvolvimento no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Escola de Direito da FGV, durante o ano de 2011. Trata-se de um esforço para compreender a atuação da Receita Federal do Brasil (RFB) no presente com vistas a propor caminhos viáveis para que possa atuar no futuro de modo mais eficiente e legítimo.

Esta breve explanação dos objetivos da pesquisa já põe em jogo dois grandes desafios: (a.) a partir de que referencial as propostas de ação devem ser pensadas?(b.) como assegurar que as propostas serão viáveis?

A preocupação em formular sugestões de ação viáveis é um dos pilares do NEF e é determinante para a escolha da metodologia de pesquisa utilizada: empreende-se um esforço de investigação de orientação eminentemente empírica, que busca não só compreender o arcabouço normativo que organiza o funcionamento da Receita Federal do Brasil, mas também práticas historicamente cristalizadas, que são igualmente capazes de determinar a direção de sua atuação. A pesquisa está fortemente alicerçada em relatos de funcionários e ex-funcionários da Receita Federal (coletados em entrevistas e reuniões organizadas pelo NEF): é preciso ouvir as pessoas que atuam no Órgão para que se possa verdadeiramente compreender as suas práticas.

Esta metodologia de pesquisa, ainda pouco utilizada nas faculdades de Direito no País, é defendida por David Trubek que, no prefácio do livro "Reforma Tributária Viável: Simplificação, Transparência e Eficiência" (que expõe o resultado das pesquisas do NEF em 2010), escreve:

Este tipo de pesquisa deve ser interdisciplinar, orientada para a ação e pragmática. Deve ser enraizada num profundo entendimento da realidade brasileira, mas também consciente de processos que ocorrem fora do Brasil; deve ser sincronizada com as necessidades da nação e às políticas para as quais se dirige; deve visualizar reformas, mas fugir de utopias(01).

Um dos objetivos do trabalho é melhorar o debate entre Receita Federal do Brasil e os diversos setores da sociedade. Nos encontros entre grupos de contribuintes e representantes do Fisco se observa, constantemente, críticas exageradas à Administração Tributária Brasileira, seguidas de discursos defensivos e, assim, pouco é de fato construído pelo diálogo. Uma descrição realista dos desafios que a Receita Federal enfrenta, dos instrumentos que possui para realizar mudanças e dos avanços que já ocorreram pode auxiliar a modificar o tom da conversa: os debates devem estar focados no que é possível fazer atualmente tendo em conta um projeto para o futuro (e não em queixas sobre o que não foi feito no passado).

Perceba-se que, para pensar projetos para o futuro, é preciso estabelecer um referencial teórico propositivo capaz de fornecer um norte a seguir. Com este objetivo, o trabalho tem em conta um modelo teórico crítico, capaz de fornecer parâmetros para a pesquisa e para a atuação de instituições, defendido por David Trubek e por outros investigadores que se encontram em sintonia com o "Novo Direito e Desenvolvimento"(02).

Ainda, será enfatizado o debate impulsionado por Richard Bird (Universidade de Toronto) e James Alm (Universidade do Estado da Geórgia)(03) sobre paradigmas de atuação de Administrações Tributárias. Optou-se por estudar os trabalhos de dois economistas, pois economistas são protagonistas das discussões sobre arquitetura de sistemas tributários e a respeito da atuação de Administrações Fiscais. Escolheu-se estes dois economistas (e não outros) pelo fato de elegerem como objeto constante de estudos a tributação em países da América Latina e Caribe e, sobretudo, por serem pensadores capazes de enxergar com clareza tanto o alcance, como também os limites da economia.

Bird e Alm escrevem que, durante muito tempo, Administrações Tributárias em todo mundo atuaram com base no "paradigma do crime": o contribuinte era visto como um potencial fraudador e as estratégias utilizadas pelos Fiscos para a aumentar a arrecadação estavam focadas na maximização a detecção e a punição (acreditava-se que mais auditorias e altas multas seriam meios suficientes para reduzir os índices de evasão).

Pesquisas empíricas demonstram, contudo, que ações pautadas nos "paradigmas do serviço e da confiança", que envolvem múltiplas ações dirigidas a estimular o cumprimento de normas tributárias, podem ser mais eficientes e legítimas(04).

O ponto de partida estabelecido por Alm e Bird fornece um referencial que permite avaliar a atuação da Receita Federal do Brasil e pensar em que medida o órgão atua com pretensões exclusivamente arrecadatórias (isto é, voltadas a arrecadar em curto prazo) e em que situações tem buscado atuar com base em um projeto dirigido a arrecadar com eficiência e, ao mesmo tempo, criar um relacionamento de cooperação e confiança com contribuintes. Um dos objetivos do trabalho é chamar a atenção para práticas bem sucedidas da Receita Federal do Brasil que deverão se tornar parâmetro para novas ações: boas experiências que devem ser discutidas e ampliadas.

Além da experiência nacional, interessa também olhar para boas práticas da Administração Tributária em outros países. Optou-se por estudar as experiências da Austrália, Cingapura e Holanda e Chile (as investigações sobre o Chile ainda não avançaram suficientemente e, por isso, não há observações sobre o País neste relatório), em razão da reconhecida eficiência e capacidade de inovação de suas Administrações Tributárias.

Os estudos comparativos não são realizados com o objetivo de transplantar modelos estrangeiros; são feitos sim com o propósito de identificar problemas comuns e compreender lições deles derivadas a serem assimiladas na arquitetura de um arranjo de propostas originais brasileiras(05).

Trata-se de olhar para boas experiências nacionais e de outros países com o objetivo de inspirar a ação e a fortalecer a demanda que vem dentro da Receita Federal - e ganha cada vez mais ressonância em diversos setores da sociedade - dirigida ao aperfeiçoamento do Órgão.

Este relatório organiza-se da seguinte maneira. Em primeiro lugar serão examinadas teses de James Alm e Richard Bird sobre paradigmas de atuação de Administrações Fiscais. A seção seguinte cuidará mais direitamente da atuação da Receita Federal do Brasil; buscar-se-á compreender tensões existentes no interior do Órgão e pensar estratégias voltadas a mobilizar potenciais de gerar mais cooperação com contribuintes em algumas práticas específicas. Em seguida, tratar-se-á de estudar a atuação das Administrações Tributárias da Holanda, Austrália e Cingapura, países que fornecem exemplos de práticas inovadoras dirigidas ao compartilhamento de responsabilidades e a realização de um diálogo efetivo com contribuintes.

2 - Novos paradigmas para a atuação de Administrações Tributárias

2.1 - A pergunta a ser feita é "por que contribuintes cumprem normas tributárias?" (e não "por que contribuintes evadem?")

James Alm, professor do departamento de economia da Georgia State University, inicia seu artigo "Do Ethics Matter? Tax Compliance and Morality" com a citação de um trecho do livro "The Bourgeois Virtues: Ethics for an Age of Commerce" escrito por D. N. McCloskey:

Notamos, finalmente, - com o atraso de muitas décadas em comparação com sociólogos, psicólogos sociais e estudiosos de literatura- que a economia cresce em um solo ético(06).

Esse ponto de partida anuncia o tom das investigações de Alm, que se consubstanciam em um trabalho consciente do potencial e, ao mesmo tempo, dos limites de análises econômicas. Há, destarte, um posicionamento verdadeiramente aberto ao diálogo com outras disciplinas.

Alm, ao lado de Jorge Martinez Vazquez, escreve sobre a atuação da Administração Tributária de países da América Latina e Caribe, procura compreender os paradigmas de ação destas e propor novas orientações para suas práticas(07).

Alm argumenta que a maior parte dos economistas utiliza o modelo econômico standard para analisar o comportamento de cumprimento de normas tributárias. Segundo ele, essa abordagem está fundada na metodologia economics-of-crime elaborada por Becker nos anos 60 e assume que o comportamento do indivíduo funda-se em uma escolha racional que visa a maximização da utilidade. O pressuposto é: cumprem-se as normas tributárias em razão das consequências econômicas esperadas.

No entanto, ao contrário da maioria dos economistas, Alm defende que o cumprimento de normas tributárias não pode ser inteiramente explicado por elementos de ordem financeira e demonstra que mesmo nos países que possuem baixo índice de cumprimento de obrigações tributárias (compliance), a evasão nunca cresce até os níveis previstos por uma análise puramente econômica. Na verdade, se os pressupostos desse modelo fossem suficientes para explicar o comportamento, contribuintes (comprendidos sempre como indivíduos racionais e utilitaristas) não declarariam virtualmente nenhuma renda. Pesquisas empíricas explicitam o equívoco do modelo "economia do crime" ao demonstrarem que há um número substancial de indivíduos que pagam tributos independentemente de incentivos financeiros(08).

Parte do problema, segundo o diagnóstico de Alm, explica-se pela forma através da qual a pergunta que impulsiona as investigações sobre o cumprimento de normas tributárias tem sido feita. Modelos econômicos standard ("economia do crime") partem da pergunta "por que as contribuintes evadem?". Alm argumenta que, ao invés disso, a pergunta a ser feita é: "por que a contribuintes cumprem normas tributárias"(09).

As consequências dessa reformulação do ponto de partida não são triviais e, segundo Alm, demonstram que as análises teóricas que economistas tem produzido no contexto de países desenvolvidos ajudam apenas limitadamente a compreender o problema da evasão fiscais em países da América Latina e Caribe.

Alm conclui que um estudo significativo sobre cumprimento de normas tributárias requer o reconhecimento da importância do papel de instituições sociais na composição dos fatores que motivam o comportamento de cumprimento de normas tributárias(10). Trata-se de levar a sério a complexidade de aspectos capazes de mover a ação individual.

Torna-se possível, desse modo, promover o diálogo fecundo entre economia e outras disciplinas. Especificamente, é possível abrir-se a teses defendidas por Tom R. Tyler - professor do departamento de psicologia social da escola de Direito da New York University (NYU) - a respeito da capacidade de indivíduos desenvolverem um comportamento autorregulatório.

Tyler explica que a relação das pessoas com autoridades consiste em uma troca de informações relevantes sobre status e não, primariamente, em uma troca de recursos financeiros. Mais do que benefícios materiais, as pessoas esperam que autoridades lhes forneçam evidências de que são membros de valor de um grupo. Tyler chama de "orgulho" a crença de que se é um membro de um grupo de alto status e de "respeito" a crença de que se é respeitado e valorizado pelo grupo.

Receber um tratamento justo em um procedimento é importante para indivíduos, pois comunica, de um lado, que o grupo do qual é membro é valoroso e tem alto status e, de outro, que o indivíduo em questão tem alto status dentro do seu grupo. Isso provoca sentimentos favoráveis de dignidade pessoal e autoestima. Ainda, um procedimento justo expressa respeito e inclusão do grupo em instituições(11).

Tyler explica que se as pessoas introjetam valores que as levam a sentir que autoridades merecem ser obedecidas, elas são capazes de desenvolver um comportamento autorregulatório.

Superar pressupostos utilitaristas que informam modelos econômicos standard e pensar os indivíduos como seres humanos capazes de criar regras para si mesmos (quer dizer, como seres autônomos) permite rever a relação entre Estado e sociedade civil. A vida privada passa a não mais ser compreendida exclusivamente como um espaço de disputa entre indivíduos. Torna-se possível levar a sério o potencial de colaboração entre sujeitos autônomos capazes de criar inovações normativas e estabelecer novas práticas tendo em conta o interesse de todos. Trata-se de desmistificar a ideia de que defesa do interesse publico é tarefa exclusiva do Estado e instaurar processos capazes de estabelecer o protagonismo da sociedade civil na solução de problemas comuns(12).

No âmbito de questões administrativas e tributárias as consequências da revisão de pontos de partida são de extrema importância. As ações de Administrações Tributárias, estabelecidas partir do modelo da "economia do crime" buscavam, sobretudo, alcançar maior capacidade de detecção (auditorias) e maiores punições (multas). Superado esse paradigma de atuação é possível abrir caminho para ações variadas das Administrações Tributárias, que passam a preocupar-se em construir um relacionamento de mais cooperação com contribuintes.

Finalmente, ressalte-se que a busca por mais cooperação entre os setores públicos e privados, cada vez mais, torna-se um tema central para diversas disciplinas; está, por exemplo, na pauta da discussão sobre questões relativas a governança pública, accountability, atuação de organizações não-governamentais e empresas sociais.

2.2 - Administrações tributárias necessitam adotar uma abordagem multifacetada, que tenha em conta a diversidade de motivações reais que explicam por que as pessoas pagam tributos

Esclarecidas os limites do modelo da "economia do crime", importa compreender como fatores diferentes de punições e estímulos financeiros influenciam o comportamento dos contribuintes e pensar como Administrações Tributárias podem mobilizar esses fatores para atuar de forma mais eficiente e legítima.

Trata-se de constatar, em primeiro lugar, que é relevante considerar instituições e arranjos específicos de cada País. Aumentar índices de cumprimento de normas tributárias (tax complience) requer, portanto, focar primariamente em melhorar instituições sociais, especialmente, em alinhar ações de Administrações Tributárias e normas sociais.

Normas sociais, que dizem respeito a crenças difundidas em diferentes grupos, afetam cumprimento de obrigações tributárias - podem, por exemplo, prescrever "é aceitável descumprir esta norma tributária" ou "é inaceitável descumprir esta norma tributária". Pesquisas comportamentais demonstram que um indivíduo tende a se comportar de acordo com normas tributárias se todos fazem o mesmo; por outro lado, se poucas pessoas cumprem determinadas normas, o indivíduo tenderá a também não cumpri-las. Isto é, um indivíduo tenderá a cumprir normas tributárias enquanto acreditar que "o cumprimento de normas tributárias" é uma norma social(13).

É fundamental compreender que o conteúdo de normas sociais não é imutável e que a atuação de Administrações Tributárias pode vir a modificá-lo. A Administração Tributária australiana se deu conta disso e, por esta razão, como veremos adiante, foi capaz de criar estratégias de harmonização entre normas jurídicas e sociais e realizar reformas inovadoras, que serviram de exemplo para o Reino Unido, Nova Zelândia e diversos outros países. A Australian Taxation Office (órgão responsável pela arrecadação na Austrália) percebeu, por exemplo, que o cumprimento de algumas normas tributárias inviabilizava os negócios de um grupo de pequenas empresas e que, por isso, muitos australianos acreditavam que era aceitável descumprir estas normas. A Administração Tributária australiana conseguiu reverter a situação e ganhou o apoio da comunidade ao reconhecer estes problemas e participar ativamente de ações voltadas a modificar este cenário(14).

Alm menciona dois outros exemplos que ilustram como a atuação de Administrações Tributárias pode afetar normas sociais. O primeiro caso diz respeito a anistias fiscais e será estudado detalhadamente adiante; basta, por agora, dizer que ao promover um número excessivo de mal planejadas anistias, o governo corrobora a crença de que é socialmente aceitável descumprir normas jurídicas. O segundo exemplo refere-se aos altos índices de informalidade na América Latina, a omissão de Administrações Tributárias neste caso leva a difusão da crença de que a autoridades fiscais não são capazes ou não querem punir a prática da evasão e isso gera, com o tempo, um declínio da arrecadação(15).

Chama-se a atenção para alguns fatores que influenciam o comportamento do contribuinte: (a.) a percepção que se tem de outros contribuintes (se são vistos como cumpridores ou como descumpridores de normas tributárias?); (b.) o modo pelo qual o indivíduo é tratado pelo governo quando paga tributos e quando recebe de serviços públicos;(c.) a sensibilidade de instituições governamentais para a opinião(16) e peculiaridades da situação do indivíduo.

A crítica ao "paradigma do crime" pretende demonstrar também que é um equívoco pensar a partir de um "agir típico" do contribuinte(17). As pessoas exibem uma grande diversidade de comportamentos e isto deve ser levado em conta por Administrações Tributárias no momento de estabelecer suas estratégias da ação. Há indivíduos que muito frequentemente procuram estratégias para fraudar e outros que sempre cumprem normas, existem aqueles que se comportam de modo a maximizar a utilidade esperada no jogo da evasão fiscal, há aqueles que são em algumas situações cooperativos e em outras free riders e muitos que são guiados por normas sociais, sentimento moral e equidade fiscal.

Uma estratégia governamental voltada ao aumento dos índices cumprimento de normas tributárias fundada simplesmente na detecção e punição pode ser razoável como ponto inicial, mas não é um bom ponto chegada. É mais eficiente utilizar uma abordagem multifacetada, sensível ao amplo leque de motivações reais que explicam por que as pessoas pagam tributos.(18)

Bird escreve que além dos métodos tradicionais (com aperfeiçoamento do uso de informações e utilização de novas tecnologias para auditorias(19)); deve-se adotar políticas que tratam o contribuinte como um indivíduo que necessita de serviços (e não como um potencial criminoso). Esta abordagem enfatiza ações como: (a.) educação do contribuinte e assistência de contribuintes em todos os passos de processos de restituição e pagamentos de tributos; (b.) veiculação de material publicitário que conecte tributos e serviços do governo; (c.) simplificação da tributação; (iv.) garantia da relativa estabilidade do sistema tributário; (d.) adoção de um princípio geral de self-assessment; (e.) elaboração de um código de ética do contribuinte e do administrador fiscal.

Estas ações estão alicerçadas no que Bird chama de paradigma de serviço: enfatizam a importância de posicionar a Administração Tributária como facilitadora e provedora de serviços ao contribuinte e no potencial do governo em modificar níveis de cumprimento de normas tributárias (tax complience) pela mudança de normas sociais.

Temas como "tributação e normas sociais" e "moral tributária" vem ganhando, nos últimos anos, cada vez mais atenção de especialistas em tributação, que, a partir diferentes (muitas vezes conflitantes) abordagens, tem tratado do assunto em importantes fóruns discussão. Por exemplo, "La Moral Tributaria como Factor Determinante en el Mejoramiento de la Eficacia de la Administración Tributaria" foi o tema da 45ª. Assembléia Geral do CIAT (Centro Interamericano de Administraciones Tributarias) realizada no Equador em abril de 2011(20); ainda, o fortalecimento do relacionamento entre Fisco, contribuintes e intermediários (como escritórios de advocacia e contabilidade) é uma das recomendações para Administrações Tributárias mais enfatizadas pela OCDE(21).

3 - Receita Federal do Brasil: Tensões e desafios para ampliar a cooperação entre Fisco e contribuinte

3.1 - Receita Federal do Brasil: entre um projeto de longo prazo e pressões para, em curto prazo, alcançar metas exclusivamente arrecadatórias

A Receita Federal do Brasil foi criada em 1968 através do Decreto 63.659 e já neste primeiro momento foi definido um projeto para Órgão, instituído com o propósito de:

Modernizar da fiscalização e arrecadação de tributos e promover uma maior integração entre Fisco e os Contribuintes de modo a facilitar o cumprimento espontâneo das obrigações tributárias(22).

Atualmente, a Secretária da Receita Federal do Brasil, Órgão específico e singular ligado ao Ministério da Fazenda, é responsável pela administração dos tributos de competência da União e incidentes sobre o comércio exterior e auxilia também o Executivo Federal na formulação da política tributária brasileira(23).

Decreto n. 7.482, de 16 de maio de 2011 cuida, no artigo 15, da competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil. Abaixo está a transcrição do caput e de alguns incisos do referido artigo:

Art. 15. À Secretaria da Receita Federal do Brasil compete: 
I - planejar, coordenar, supervisionar, executar, controlar e avaliar as atividades de Administração Tributária federal e aduaneira,;
II - propor medidas de aperfeiçoamento e regulamentação e a consolidação da legislação tributária federal;
III - interpretar e aplicar a legislação tributária, aduaneira, de custeio previdenciário e correlata, editando os atos normativos e as instruções necessárias à sua execução;
IV -estabelecer obrigações tributárias acessórias, inclusive disciplinar a entrega de declarações; 
VII - acompanhar a execução das políticas tributária e aduaneira e estudar seus efeitos sociais e econômicos; 
VIII - planejar, dirigir, supervisionar, orientar, coordenar e executar os serviços de fiscalização, lançamento, cobrança, arrecadação e controle dos tributos e demais receitas da União sob sua administração;
XI -estimar e quantificar a renúncia de receitas administradas e avaliar os efeitos das reduções de alíquotas, das isenções tributárias e dos incentivos ou estímulos fiscais, ressalvada a competência de outros órgãos que também tratam da matéria; 
XII - promover atividades de cooperação e integração entre as Administrações Tributárias do País, entre o Fisco e o contribuinte, e de educação fiscal, bem assim preparar e divulgar informações tributárias e aduaneiras; 
XIII - realizar estudos para subsidiar a formulação da política tributária e estabelecer política de informações econômico-fiscais e implementar sistemática de coleta, tratamento e divulgação dessas informações;
XIV - celebrar convênios com órgãos e entidades da Administração Pública e entidades de direito público ou privado, para permuta de informações, racionalização de atividades, desenvolvimento de sistemas compartilhados e realização de operações conjuntas.

 

Ressalte-se que o inciso XII dispõe:

compete à Receita Federal do Brasil

"promover atividades de cooperação e integração entre as Administrações Tributárias do País, entre o Fisco e o contribuinte, e de educação fiscal, bem assim preparar e divulgar informações tributárias e aduaneiras".

A tarefa que se faz presente é pensar o projeto de ação da Receita Federal (expresso no referido Decreto) de modo integrado com ideais de democracia protegidos pela Constituição Federal e em um contexto em que há setores sociais comprometidos com o fortalecimento de práticas mais participativas e que acreditam que questões de interesse público não dizem respeito apenas ao Estado, mas sim a toda sociedade. A demanda é por mais transparência, accountability e mecanismos administrativos que, de toda forma, garantam porosidade da Administração Pública a demandas sociais.

Reuniões e entrevistas realizadas pelo NEF no segundo semestre do ano de 2010 e no primeiro semestre do ano de 2011, com funcionários e ex-funcionários da Receita Federal do Brasil,(24) ajudaram-nos a compreender como os próprios agentes do Órgão percebem os desafios que devem ser enfrentados. A principal questão em jogo, de acordo com os entrevistados, diz respeito à constante pressão que o governo exerce sobre a Receita Federal para que alcance, a qualquer custo, metas de arrecadação. Isto implica, muitas vezes, em ações debilmente planejadas que, de fato, aumentam a arrecadação em curto prazo; mas que geram efeitos negativos em médio e longo prazo. Alguns exemplos de atuação Administração Tributária voltada a interesses meramente arrecadatórios são: (i.) as recentes anistias fiscais e; (ii.) utilização de consultas fiscais para, ao invés de ampliar o diálogo, gerar um aumento rápido de arrecadação. Estes dois tópicos serão discutidos detalhadamente mais adiante.

Trata-se, portanto, de investigar tensões entre pretensões exclusivamente arrecadatórias (em uma política imediatista de governos) e forças internas e externas à Receita Federal dirigidas a realização de um projeto que tem como escopo arrecadar de modo eficiente e legítimo (uma política de Estado a ser realizada em longo e médio prazo).

3.2. Pensando estratégias para mobilizar aspectos de práticas da Receita Federal do Brasil dirigidas à realização de um projeto de cooperação fiscal.

Neste tópico pretende-se trazer à tona práticas (algumas delas dizem respeito a ação da própria Receita Federal e outras referem-se mais genericamente a Administração Tributária brasileira, mas podem ser associadas à Receita Federal e ao objetivo de promover mais cooperação fiscal) ligadas ao projeto da Receita Federal do Brasil afirmado noDecreto 7.482/2011 e que deve ser interpretado à luz das mais interessantes teorias sobre cooperação entre Estado e sociedade. A pergunta que orientará a investigação sobre cada uma das práticas selecionadas é:

"em que medida esta ação específica realiza o projeto da Receita Federal de arrecadar de modo eficiente e legítimo e que aspectos desta prática guardam o potencial de gerar mais cooperação com contribuinte?"

O pressuposto por trás da pergunta é o de que um governo legítimo é também mais eficiente em longo prazo. No que se refere a questões relativas a Administrações Tributárias, esta tese pode ser bem articulada com argumentos defendidos por James Alm, de acordo com os quais, aumentar os índices de cumprimento voluntário de normas tributárias é a estratégia mais eficiente para gerar mais arrecadação.

Através de entrevistas realizadas com funcionários da Receita Federal, algumas práticas interessantes realizadas pelo Órgão foram apontadas, dentre elas, cabe destacar: o Programa Nacional de Educação Fiscal (PNEF); projeto de algumas delegacias da Receita Federal de SP intitulado "visão integral do contribuinte" (em que a Receita passa a considerar o plano de negócios e as especificidades do contribuinte de diversos setores); novo modelo de atendimento ao contribuinte do imposto de renda (que convida a uma reflexão sobre a importância de classificação de contribuintes com base na moral tributária(25)); aperfeiçoamento de práticas de atendimento aos contribuintes (um bom exemplo em São Paulo é o CAC de Santo Amaro); processo eletrônico (implicará em redução do tempo e de custos do processo); súmulas vinculantes do CARF (harmonizam decisões do Conselho e atuação dos Auditores Fiscais); avanços em sistema de inteligência artificial (que analisa contabilidade e verifica que contribuintes devem ser fiscalizados); aperfeiçoamento da malha de pessoa física (sistema da Receita Federal é bastante transparente, esclarece ao contribuinte as razões pelas quais sua declaração ficou na malha e fornece a oportunidade para corrigir erros).

Algumas dessas ações serão selecionadas de acordo com os objetivos da pesquisa e investigadas de forma mais aprofundada no futuro. Um obstáculo à pesquisa é a falta de acesso, em alguns casos, a material escrito referente aos projetos (principalmente documentos que mensurem resultados). Nas situações em que não houver possibilidade de acesso a material escrito, a principal fonte para a investigação serão entrevistas.

As pesquisas sobre o processo administrativo de consulta fiscal, anistiais fiscais, educação fiscal e a nota fiscal paulista (os dois últimos temas extravasam o âmbito de atuação da Receita Federal do Brasil, mas como veremos, estão ligados aos objetivos da investigação, pois podem trazer à tona aspectos de práticas capazes de indicar caminhos para futuras ações do Órgão) encontram-se em uma fase um pouco mais avançada. Cabe, destarte, tecer algumas considerações iniciais sobre a investigação já realizada.(i.) Sobre o potencial do processo administrativo de consulta da Receita Federal do Brasil de gerar mais cooperação entre Fisco e contribuinte.

Os artigos 4849 e 50 da Lei 9.430 de 1996 dispõem sobre as regras do procedimento administrativo de consulta, estabelecido com o desiderato de orientar o contribuinte a respeito de como deve proceder para cumprir suas obrigações tributárias e esclarecer como o Fisco interpreta determinada norma.

Entrevistas realizadas com contribuintes sugerem, contudo, que o processo administrativo de consulta, na prática, não tem alcançando o objetivo de viabilizar um diálogo efetivo entre Fisco e contribuintes. Entrevistados disseram não confiar no processo e afirmaram que a Administração Tributária tem utilizado as consultas de forma estratégica: as informações fornecidas pelos contribuintes são utilizadas frequentemente pelo Fisco para identificar novas operações - que, muitas vezes, estão situadas em uma zona cinzenta entre o lícito e o ilícito - e para "forçar" uma interpretação das normas que qualifica aquelas ações como fraudulentas. Afirmaram também que consideram que o Fisco não fundamenta bem as respostas às consultas e lembraram que os antigos pareceres normativos eram instrumentos mais interessantes, pois neles havia sempre uma cuidadosa justificação das razões das decisões (contribuintes disseram que os pareceres normativos eram tão bem fundamentados que, mesmo quando as decisões lhes eram desfavoráveis, sentiam-se satisfeitos, pois percebiam-nas como legítimas).

Até esta etapa da pesquisa sobre o processo administrativo de consulta foram ouvidos muitos contribuintes e poucos representantes do Fisco. Nas fases seguintes caberá entrevistar funcionários da Receita Federal e procurar acessar documentos públicos com o objetivo de compreender em que medida as suspeitas levantadas nas entrevistas com contribuintes se confirmam e cuidar de novas indagações que podem surgir.

A pergunta que, por ora, emerge da investigação é:

"é viável para Receita Federal dar respostas mais bem fundamentadas às consultas realizadas por contribuintes?"

(ii.) Repercussões de anistias fiscais em normas sociais e no cumprimento voluntário de obrigações tributárias.

Anistia fiscal é uma hipótese de exclusão do crédito tributário prevista no Código Tributário Nacional em seu artigo 175. De acordo com o artigo 180 do mesmo diploma legal, anistia diz respeito apenas a infrações legais e somente àquelas infrações que foram cometidas em período anterior à vigência da lei que concede a anistia. Ainda, não pode haver anistia referente a ato qualificado em lei como crime ou contravenção e a ato que, mesmo sem essa qualificação, seja praticado com dolo, fraude ou simulação pelo sujeito passivo ou por terceiro em benefício daquele.

A literatura especializada descreve anistia como processo que leva a "não constituição do crédito tributário relativo à penalidade".(26)

Ocorre que, na prática, os programas de anistia fiscal realizados no Brasil - os quais apresentam fundamentação legal na regra do artigo 180 do Código Tributário Nacional - oferecem a renegociação de toda a dívida, fugindo à hipótese pura e tradicional de anistia fiscal que a lei elenca e criando, assim, uma hipótese de anistia sui generis. Anote-se também que é frequente a instituição desses programas em épocas de campanha eleitoral - fato que levanta a suspeita de que muitas anistias não são concedidas após análise adequada do Governo, muito menos em caráter excepcional (como exigido em lei).(27) Exemplo disso, é o "Novo Refis" (Novo Programa de Recuperação Fiscal), instituído pela Lei nº 11.941/09 e regulamentado pela Portaria Conjunta nº 6/09 da RFB e da PFN, que, de acordo com o artigo 1º da Lei, permite a renegociação de todos os débitos dos contribuintes (constituídos ou não, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, mesmo com Execução Fiscal já ajuizada, inclusive aqueles decorrentes do aproveitamento indevido de créditos de IPI oriundos da aquisição de produtos tributados à alíquota zero ou não-tributados e referentes à COFINS das sociedade civis de prestação de serviços profissionais) e que foi introduzido pelo Governo Federal no início da campanha eleitoral para a presidência da República em 2009.

Se, de um lado, contribuintes constantemente se queixam da complexidade de incontáveis normas que regulamentam os programas de renegociação fiscal e da grande dificuldade, tanto de contribuintes, quanto de profissionais da área, para a compreensão de seus preceitos(28); de outro, também funcionários da Receita Federal fazem fortes críticas a forma pela qual são realizadas as anistias fiscais no Brasil (alguns funcionários da Receita Federal entrevistados associaram expressamente as anistias fiscais com uma política meramente arrecadatória do Governo).

A partir pesquisas realizadas em países da América Latina, James Alm constata que anistias fiscais podem afetar negativamente normas sociais e, assim, diminuir índices cumprimento voluntário de normas tributárias (compliance). Evidências coletadas por Alm de um largo número de anistias que aconteceram em diversos países estudados sugerem as seguintes constatações gerais(29):

- Anistias fiscais tipicamente geram pouca arrecadação adicional. O valor arrecadado em uma anistia fiscal é, em geral, pequeno e, em qualquer caso, a arrecadação proveniente de anistia é frequentemente percebida de modo exagerado, pois o valor arrecadado é oriundo de conhecidos descumpridores de normas tributárias e provavelmente seria arrecadado de qualquer maneira. Múltiplas anistias são ainda mais mal sucedidas no que diz respeito à arrecadação adicional e tem repercussões negativas no cumprimento voluntário de obrigações tributárias, já que contribuintes incorporam a expectativa de que futuros períodos de agraciamento irão ocorrer. Além disso, responsáveis por grandes evasões tipicamente não participam de uma anistia.

- Indivíduos ou empresas tendem a participar mais quando a anistia é acompanhada de mudanças significativas no sistema tributário. Evidências empíricas indicam que os programas de anistia mais eficientes em termos de geração de arrecadação são aqueles que reduzem tributos e penalidades, permitem a participação de conhecidos descumpridores de normas tributárias e, especialmente, aqueles em que se aumenta o enforcement (30) pós-anistia. Há evidências de que o cumprimento voluntário em geral cai depois de uma anistia que não é acompanha de aumento de auditorias, penalidades e programas de educação ao contribuinte. Este declínio se deve a vários fatores, notadamente expectativas dos contribuintes sobre outra futura anistia e sentimentos dos contribuintes de tratamento injusto em relação a responsáveis por evasão.

- Cidadãos devem acreditar que a anistia acontecerá apenas uma vez (o governo deve ter credibilidade). Para que uma anistia seja bem sucedida no que se refere à arrecadação de recursos durante e após o período de anistia, os cidadãos devem acreditar que a anistia é uma oportunidade que apenas acontecerá uma vez: anistia não deve ser usada como instrumento de arrecadação de emergência.

(iii.) A experiência da nota fiscal paulista: repensando os paradigmas da educação fiscal.

Interessa estudar a experiência Nota Fiscal Paulista (NFP), pois, muito embora se trate de um programa realizado por Fisco estadual, alguns aspectos deste tipo de experiência podem utilizados como exemplo para pensar ações referentes ao compartilhamento de tarefas e a programas de educação fiscal.

Nota Fiscal Paulista (NFP), programa que criado pelo Governo do Estado de São Paulo em outubro de 2007, visa combater a sonegação fiscal e reduzir a carga tributária individual(31) por meio de sorteio de prêmios mensais e da devolução semestral de créditos - que podem ser debitados em conta corrente, utilizados no pagamento de contas ou de IPVA(32) ou, ainda, ser doados para entidades assistenciais cadastradas pelo governo do Estado(33) - aos consumidores (pessoas físicas ou jurídicas) que solicitarem a inclusão de seu CPF/CNPJ no documento fiscal de compras realizadas no segmento de varejo no comércio do Estado de São Paulo.(34)

Há alguns aspectos deste programa que merecem atenção especial. Em primeiro lugar, ele estimula o compartilhamento de tarefas de fiscalização entre Fisco e contribuintes e, desse modo, aponta para a possibilidade de superar modelos tradicionais de regulação (calcados no paradigma Command and Control(35)) em que as regras (estabelecidas como comandos apoiados por sanções) são elaboradas e fiscalizadas exclusivamente pelo Estado. Além disso, a NFP atua como um lembrete de que há tributos embutidos no consumo (chama a atenção para o fato de que a tributação afeta a vida das pessoas); tem o potencial de criar o hábito de fiscalizar e de gerar comprometimento dos cidadãos com questões de interesse público (ao pedir a nota, verificar o site do da Fazenda paulista o cidadão, mesmo sem perceber, engaja-se em uma relação com instituições).

Esse tipo de experiência fornece a possibilidade pensar a relação entre educação e atuação política(36). Quanto mais os cidadãos percebem a conexão entre experiências cotidianas individuais (como adquirir um produto em um supermercado) e questões coletivas (decisões sobre os rumos do sistema tributário) mais serão capazes de engajar-se em debates políticos (como discussões relativas a modificações em normas tributárias). Ao gerar um comprometimento dos cidadãos com questões de interesse público, o Fisco educa e cria uma situação em que o interesse dos cidadãos em fiscalizar as ações do próprio Fisco aumenta e, por isso, o Fisco se permite educar.

4 - Cooperação fiscal na Experiência da Holanda, Cingapura, Austrália

4.1 - Aprendendo com a experiência de países que recentemente realizaram reformas inovadoras em suas Administrações Tributárias

Optou-se por investigar a experiência do Chile, Austrália, Cingapura e Holanda em razão da reconhecida eficiência e capacidade de inovação de suas Administrações Tributárias. Busca-se olhar para a experiências de outros países com o propósito de compreender problemas comuns, assimilar lições e inspirar-se em práticas bem sucedidas para pensar propostas originais brasileiras. Cabe ressaltar que as pesquisas sobre os diferentes países selecionados encontram-se em fases distintas: os estudos sobre a Administração Tributária chilena estão em estágio incipiente (e por isso optou-se por não incluir anotações sobre o País neste relatório); por outro lado, a investigação sobre o caso australiano encontra-se em etapa bastante avançada(37).

4.2 - Caso holandês: compartilhando responsabilidades com os contribuintes

Em sintonia com teses defendidas por Alm e Bird, Marian Bette (representante do Departamento de Assuntos Internacionais da Administração Tributária e Aduaneira da Holanda) em trabalho intitulado "Administración Holandesa de Impuestos y Aduanas Países Bajos" - apresentado na Assembléia Geral do CIAT No. 43 em Santo Domingo (Rep. Dominicana) -(38) argumenta que modelos instrumentais (de acordo os quais as pessoas fazem uma consideração entre as vantagens da evasão fiscal e os riscos supostos de sofrer penalidade) são insuficientes e não explicam por que o nível existente de cumprimento de obrigações tributárias é tão alto. Bette explica que aqueles modelos não levam em conta as circunstâncias, negligenciam a importância de instituições, normas sociais e, igualmente, normas pessoais. Isto é, deixam de atentar para o fato de que o comportamento do contribuinte não se funda apenas na análise de custos e benefícios e que as convicções pessoais e as esperadas reações de entorno são causas relevantes de ação.

Tendo em conta que a abordagem puramente repressiva não influi de modo perdurável no comportamento do contribuinte, a Administração Tributária holandesa tem um enfoque de ação não instrumental(39).

A Fazenda holandesa criou um programa para reduzir complexidades que facilita o cumprimento de normas tributárias (compliance) e reduz a carga administrativa. Uma das principais tarefas é identificar espaços em que a Fazenda pode compartilhar responsabilidades com o contribuinte.

Um aspecto importante da atuação da Fazendo holandesa diz respeito a preocupação em discutir previamente modificações mais radicais na legislação com as organizações de contribuintes, organizações empresariais e organizações de auditores fiscais.

A base da atuação é confiança (relação deve ser a mais transparente possível), mas nos casos em que a confiança é infundada, pode-se eleger um enfoque mais repressivo (enfoque variado). Importa, portanto, separar contribuintes em grupos e fornecer uma resposta adequada aos diferentes perfis encontrados. Faz-se necessário, do mesmo modo, utilizar instrumentos preventivos, repressivos e de vigilância horizontal (que envolve comunicação e colaboração com diferentes instâncias responsáveis pela aplicação de normas).

Em seu informe "O Futuro do Estado de Direito" de 2002, o Conselho Científico para Gestão Governamental da Holanda ressalta a importância do "desenvolvimento horizontal" da sociedade. Segundo o Conselho, a colaboração entre a Administração e os cidadãos aumentará cada vez mais no futuro: os cidadãos e as empresas querem menos regulações e mais responsabilidade. Isto foi constatado nas reuniões celebradas em 2003, das quais participaram Fazenda, organizações de empresários e algumas empresas multinacionais. Uma das principais constatações alcançadas no encontro foi a de que há uma cultura de desconfiança entre Fazenda e empresas que, consequentemente, não trocam informação apropriadamente. A vigilância horizontal foi introduzida para lidar com este problema.Bette explica que os elementos mais importantes do conceito de vigilância horizontal são: confiança mútua, entendimento e transparência. Para fazer escolhas equilibradas no terreno da estratégia de aplicação, a Fazenda investiga em que situações é possível compartilhar a responsabilidade do cumprimento com as partes envolvidas. Esta abordagem envolve a distinção de empresas de acordo seu perfil e grau de risco e a delegação de determinadas tarefas para empresas confiáveis.

A vigilância horizontal é um complemento eficaz a aplicação tradicional (vertical), na qual a Administração vigia (de cima para baixo) o cumprimento das regulações. O ponto de partida é o de que a vigilância deve ser interpretada com um a responsabilidade comum de todas as contrapartes na cadeia fiscal. O objetivo da colaboração é tratar de solucionar de antemão o máximo de problemas possíveis e evitar o duplo trabalho em cadeia. Esta estratégia fornece aos contribuintes uma resposta segura e mais rápida; ademais, acredita-se que este tipo de atuação repercutirá, no futuro, em uma menor necessidade de controle.

Exemplo de instrumento de vigilância horizontal são os convênios reguladores de aplicação. São acordos sobre a maneira pela qual se realiza a aplicação da lei utilizados como mecanismos de diálogo com empresas de grande porte. Os grandes riscos fiscais são informados pela empresa, que também explica os fatos e fornece sua opinião sobre as consequências fiscais; do outro lado, a Fazenda dá sua opinião sobre as repercussões tributárias da ação da empresa.

Bette ressalta ainda que a Fazenda holandesa constatou que, para viabilizar um diálogo efetivo com contribuintes, é preciso preocupar-se com a formação de seus servidores. Para gerar uma relação de confiança, é preciso estar em condições de criar relações e mantê-las e, para isso, a empatia e a compreensão oral, bem como a capacidade de decisão são características necessárias. Com esse propósito, os holandeses realizam trabalho dirigido à mudança na cultura e no comportamento de seus funcionários.

4.3 - Caso australiano: estratégias inovadoras capazes de afetar positivamente normas sociais e de gerar um diálogo produtivo com diversos setores da sociedade

4.3.1 - Sobre o processo de reforma na Administração Tributária australiana

O atual modelo regulatório da Austrália leva em conta contextos nos quais se inserem os contribuintes, inclui valores, normas, hábitos sociais e a interação de contribuintes com os órgãos da Administração Tributária. Depois de implantado com sucesso na Austrália, este modelo foi adotado para outros países, como Reino Unido, Nova Zelândia, Pennsylvania (EUA) e Indonésia.

As reformas realizadas pela Administração Tributária australiana foram realizadas de modo bem planejado e transparente. Informações de qualidade, organizadas de modo didático sobre o processo de reforma estão atualmente disponíveis no site da Australian Taxation Office (ATO) - a principal agência de arrecadação do Governo Australiano - e facilitaram muitíssimo a realização desta investigação.

Em novembro de 1996, a ATO criou a Cash Economy Task Force com o desiderato de examinar questões relativas ao cumprimento de normas tributárias na Austrália e fazer recomendações para aumentar os índices de cumprimento (compliance). A Task Force produziu três relatórios sobre Tax Compliance (em 1997, 1998, 2006). Seu ultimo relatório (2006) ressalta que foi demonstrado - nos relatórios anteriores - que um aprimoramento das estratégias de enforcement requer o encorajamento da obediência voluntária à legislação tributária por meio da criação de um ambiente regulatório participativo e cooperativo. O relatório ainda lembra que em 1997 e 1998 foi enfatizado que o desenvolvimento de parcerias com empresas, profissionais e grupos da comunidade é crucial para a concretização das modificações sugeridas. Finalmente, em seu último relatório, a Task Force avalia que suas recomendações chaves foram postas em prática de modo eficiente pela ATO(40). De fato, as conclusões e recomendações de relatórios elaborados pela Task Force a ATO (Australian Taxation Office) resultaram na implementação do novo modelo regulatório na Austrália.

Em dezembro de 2006 o Commissioner of Taxation (maior autoridade da ATO) criou o Advisory Group (um grupo de aconselhamento) para continuar o trabalho da Task Force (41).

O primeiro relatório proposto a ATO pela Task Force focava nas seguintes áreas chaves relativas à cash economy (a expressão "cash economy" refere-se a renda que não é registrada nos livros):(42) (a.) Trabalhar em conjunto com fiscais, empresários, grupos comunitários e outras agências governamentais para compreender melhor as questões estruturais e fatores motivadores que sustentam a cash economy; (b.) Desenvolver iniciativas bem direcionadas e efetivas para o cumprimento de obrigações tributárias (compliance) com o propósito de aumentar a confiança comunitária no sistema fiscal; (c.) implementar um programa de comunicação para tornar público os custos para a comunidade do cash economy de modo a desafiar a percepção da comunidade de que "não pagar impostos é aceitável"; (d.) trabalhar cooperativamente com fiscais, industria, grupos comunitários e outras agências em iniciativas referentes ao cash economy; (e.) assegurar-se de que os funcionários da ATO possuam habilidades adequadas e acesso a treinamento para atuar nos programas.

O Task Force propôs utilizar estratégias variadas para lidar com a evasão fiscal. Estas estratégias necessitavam ser adequadas a dinâmica de negócios particulares e as práticas de evasão.

As preocupações da ATO dirigiam-se, sobretudo, alta difusão na comunidade da crença de que "não pagar impostos é aceitável". Para lidar com esta questão, a ATO procurou aumentar o seu conhecimento a respeito dos fatores que influenciam a evasão fiscal. Foram realizadas pesquisas com empresas para entender as diferentes dinâmicas de negócios específicos e determinar por que razão "cash practicies" sistêmicas acontecem e para desenvolver métodos de detecção destas práticas.

Outro lado da abordagem da ATO foi o trabalho com grupos da comunidade australiana que são afetados pela evasão fiscal. Estes grupos ajudaram a identificar práticas e negócios de alto risco. O propósito do diálogo era tornar a ATO mais sensível a forças do mercado e lhe permitir desenvolver regimes regulatórios flexíveis, que reconhecem as diferenças entre os diversos segmentos. A compreensão dos elementos estruturais que caracterizam segmentos particulares ajudou a ATO a administrar o sistema tributário de modo favorável a pequenos negócios. E ainda a definir quais eram as áreas de alto risco (em que a intervenção da ATO teria que ser maior) e quais eram as áreas de baixo risco (em que a tributação poderia ser menos regulada e os custos de cumprimento poderiam ser reduzidos). Este tipo de atuação é capaz de legitimar a aplicação de medidas fortes pela ATO, já que estas ações podem ser justificadas pelo fato de que medidas mais brandas se mostraram mal sucedidas na tarefa de mudar o comportamento do contribuinte.

Havia, também, evidências de que muitos casos de cash economy envolviam alto volume de transações de baixo valor, comumente motivadas pela sobrevivência de negócios ou de indivíduos. Nestas circunstâncias, os australianos frequentemente racionalizavam o ato de evasão, que parecia aceitável para os participantes e para a comunidade em geral. O posicionamento da ATO nestes casos foi especialmente interessante: partindo do pressuposto de que um dos principais objetivos a serem alcançados era alcançar o suporte da comunidade, a ATO passou a atuar de modo sensível aos reais impactos da aplicação de normas tributárias, reconheceu que o cumprimento de normas, em alguns casos, pode, de fato, resultar em menos negócios desemprego e aumento de preços e participou ativamente de ações voltadas a modificar esta situação(43).

4.3.2 - Algumas estratégias utilizadas pela Administração Tributária australiana para facilitar o diálogo entre Fisco e contribuintes (o exemplo do Board of Taxation)

(i.) Board of Taxation: composição e atribuições.

Como explicitado, trabalho da Tax Force, junto com a ATO, resultou na implementação de um novo e bem sucedido modelo regulatório na Austrália. O Board of Taxation foi criado pelo Governo Australiano para auxiliar ATO e Tesouro a pôr em prática este novo modelo.

Board of Taxation tem a função de aconselhar e auxiliar o Tesouro australiano de modo a garantir que os processos de tomada de decisão e de implementação de políticas tributárias sejam mais participativos e sensíveis às peculiaridades dos contribuintes afetados. Cabe ao Board of Taxation ajudar nas tarefas de aperfeiçoamento do desenho do sistema tributário e de efetivação de normas; para isso, a agência elabora revisões, relatórios e outros estudos, aprovados ou solicitados pelo Tesouro, sobre o sistema tributário.

O Board of Taxation tem dez membros, sete deles atuam em setores não governamentais e são indicados pelo Tesouro em razão de sua experiência. Há três membros ex officio (que podem ser representados por delegados) - Secretary to the Australian Treasury, Commissioner of Taxation e o "First Parliamentary Counsel - e, atualmente, participam do Board of Taxation três advogados e quatro empresários (profissionais que possuem perfis bastante distinto, um dos membros, por exemplo, atuou em associações de bancos e outro membro tem histórico de atuação em entidades representativas de pequenas empresas).

O Board of Taxation tem uma agenda de reuniões ordinárias com Stakeholders e encontros com grupos alvo - isto é, grupos afetados por ações ligadas a um dos projetos em discussão.

São exemplos de Steakholders presentes nos últimos encontros: grandes escritórios de advocacia e contabilidade, grandes corporações e associações de negócios, representantes Tesouro australiano, representantes da ATO, grupos de empresários de regiões específicas, grandes empresas (como PricewaterhouseCoopers e Village Roadshow), Associação Australiana de Contabilidade e Tributação, Taxation Institute of Australia, organizações não lucrativas, entidades representativas de pequenas empresas, entidades representativas de setores específicos (como agricultura, bancos etc).

(ii.) Um exemplo atuação do Board of Taxation: revisão pós-implementação de aspectos do "Consolidation Regime"

O Tesouro e/ou Ministério pode solicitar que o Board of Taxation faça relatórios e revisões sobre questões tributárias relevantes. Os projetos referem-se a assuntos como sugestões de alteração de normas, avaliação da efetividade de normas e de acordos internacionais firmados.

Uma vez solicitado, o Board of Taxation deve conduzir trabalhos de avaliação participativa do sistema tributário. Grande parte de sua atuação consiste, portanto, em garantir que representantes da sociedade, sobretudo dos setores sociais mais afetados pelas normas tributárias avaliadas, participem ativamente do processo.

Para compreender como atua o Board of Taxation interessa examinar sua atuação em um caso específico.

Em junho de 2009, o Tesouro Australiano solicitou que o Board of Taxation verificasse a efetividade de nova legislação em relação à realização das políticas intencionadas. Especificamente, a tarefa era avaliar a eficácia de novas normas que estabelecem que grupos corporativos wholly owned devem ser tratados como uma única entidade para efeitos de tributação (Single Entity Rule).

O objetivo da revisão era responder às seguintes perguntas:

(i.) A legislação realizou o que se pretendia em termos de política governamental, tendo em conta a administração de custos mensuráveis?

(ii.) A legislação está expressa de modo claro, simples e compreensível?

(iii.) O texto da lei exclui consequências não intencionais de natureza substantiva?

(iv.) A legislação leva em conta as circunstâncias reais dos contribuintes e práticas comerciais?

(v.) A legislação é consistente com outras normas tributárias?

(vi.) A legislação fornece certeza às relações?

Foram algumas das ações do Board of Taxation para realização do projeto de modo participativo:

(i.) Inicialmente o Board of Taxation anunciou em seu site a tarefa a ser realizada e solicitou a participação de todos os Steakholders. Foi aberto a todos um canal de comunicação via internet (sugestões e críticas poderiam ser a todo tempo enviadas).

(ii.) O Board of Taxation conduziu reuniões de consulta com representante de setores da sociedade mais afetados (setores-alvo) que auxiliaram na elaboração de Discussion Paper(44) sobre o tema.

(iii.) Em tempo simultâneo ao da publicação do paper, o Board of Taxation solicitou avaliações públicas para a revisão e reuniões de consultas públicas.

Importa ressaltar alguns aspectos do processo elaboração e do conteúdo do Discussion Paper publicado. O paper mostra os resultados da avaliação realizada pelo Board of Taxation junto com alguns atores estratégicos (representantes de setores da sociedade afetados pela nova legislação) e, em cada item há, em primeiro lugar, a exposição de conclusões alcançadas a respeito de pontos determinados, em seguida, perguntas bastante específicas (que mantêm a discussão focada em temas determinados e evitam que o debate ganhe contornos excessivamente genéricos) que o Board of Taxation solicita que os Stakeholders comentem(45).

Este exemplo deve ter deixado claro como Board of Taxation busca intermediar a "conversa" entre Administração Fiscal e contribuinte e a forma pela qual dedica-se à construção de relacionamentos e ao desenvolvimento de parcerias. A postura do Board of Taxation é ativa e prospectiva: solicita que contribuintes (nomeadamente aqueles que são diretamente afetados pelas normas discutidas em projetos específicas) participem da elaboração de avaliações, compareçam a reuniões para discussão sobre os rumos de políticas fiscais e, ainda, nos "papers" que prepara, formula perguntas dirigidas a compreender o que contribuintes tem a dizer sobre os efeitos de uma determinada política fiscal em seus negócios.

Uma das propostas atualmente em discussão no NEF diz respeito à criação de um grupo de aconselhamento da Administração Tributária Brasileira, o Conselho Fiscal Nacional (CFN). Entre outros objetivos, a atuação do Conselho teria o escopo de garantir que Administração Tributária seja mais porosa a demandas de diversos setores da sociedade. O Board of Taxation pode ser visto como um exemplo bem sucedido, capaz de nos ajudar a pensar um Conselho Fiscal Nacional

4.4 - O caso de Cingapura: Tecnologia a serviço da cooperação entre contribuinte e da Administração Tributária.

Cingapura executou uma série de medidas ao longo da década de 1990 para modernizar sua Administração Tributária, aumentar sua eficiência e incentivar o cumprimento voluntário das obrigações por parte do contribuinte. Este tópico deverá expor os principais aspectos em torno dos quais se estruturou a experiência deste País.

Cingapura é um dos países asiáticos que mais entusiasticamente adotou reformas em sua Administração Pública ao longo da década de 1990 com vistas ao aperfeiçoamento de sistemas de governança. As reformas foram orientadas pela ideia geral de que é necessário desconstruir a noção de que Estado deve ser o agente dominante e, em alguns casos, aplicar princípios semelhantes aos da iniciativa privada de modo a levar a sério as preferências dos usuários. A aceitação destes princípios por Cingapura fica evidente em diversas iniciativas e campanhas públicas, tais como Singapore 21, Manpower 21 e Public Service 21(46).

Cingapura tornou-se exemplo de eficiência e competência na prestação de serviços públicos. Isto especialmente em razão de sua capacidade de produzir um crescimento consistentemente elevado ao longo do tempo:o seu PIB multiplicou-se por 2.5 entre 1988 e 1997 e sua renda per capita ultrapassou a da Austrália, do Canadá e do Reino Unido.(47)

Outra peculiaridade deste país diz respeito ao fato de que, enquanto a maior parte dos países fazem reformas em razão da ineficiência dos serviços prestados pela Administração, Cingapura implementou suas reformas mesmo já tendo alcançado razoável nível de eficiência na prestação de serviços públicos. Além disso, se outros Estados aderiram ao New Public Management (NPM) por pressão de agências internacionais em razão do seu alto nível de endividamento externo, Cingapura é virtualmente livre de problemas deste tipo(48).

Esta tendência se aplicou especificamente ao setor da arrecadação tributária, notadamente por meio da aplicação de novas tecnologias e por reformas na organização burocrática.

Até meados dos anos 1990 o órgão responsável pela arrecadação de tributos em Cingapura estava numa situação desfavorável: deixava de arrecadar grandes valores, o nível de atividade de seus funcionários precisava ser três vezes maior do que em outros setores administrativos e os usuários de serviços públicos estavam insatisfeitos(49)

Em 1992 criou-se o Inland Revenue Authority of Singapore (IRAS), em substituição ao Inland Revenue Department, com o objetivo de que a sigla pudesse representar as mudanças no relacionamento entre Fisco e contribuinte. A ideia era a de que, além da denominação oficial, IRAS, passasse a significar, também, I Respond and Serve. Tornou-se competência deste órgão administrar tributos incidentes sobre a renda e a propriedade, além de um recém-criado imposto sobre valor agregado (Goods and Services Tax).

Os procedimentos de atuação da IRAS tinham como foco a informatização da Administração Tributária. Os resultados mostraram-se bastante positivos: observou-se redução no volume da dívida ativa, constância nos valores atribuídos às propriedades, diminuição no nível de atividade exigido dos funcionários, aumento na prestação de contas e, principalmente, aumento no grau de satisfação do contribuinte.

Uma das virtudes das reformas, que tiveram ótimos resultados em um curto espaço de tempo, foi o planejamento das mudanças, executadas em fases muito claramente definidas e monitoradas, levando em consideração as reações dos contribuintes em cada estágio antes de partir para o próximo. Além disso, as decisões foram assumidas como compromissos políticos claros nos níveis hierárquicos mais altos, que se comprometeram com as mudanças e com a destinação de recursos suficientes para elas(50).

Não se tratou, assim, de simplesmente introduzir a tecnologia disponível no serviço de arrecadação, mas de reestruturar a forma de arrecadar. Alteraram-se tanto a estrutura da atividade administrativa como os processos de controle do desempenho, além de todos os procedimentos internos de processamento das informações do contribuinte. Em razão disso, as transformações foram muito além de fazer um arquivo virtual de documentos e um bom Web-site.

Tratava-se de livrar-se de excesso de papel e de burocracia. O objetivo era claro: tornar os processos administrativos mais eficientes e reduzir o desperdício de tempo e capacidade dos funcionários em atividades improdutivas como numeração de páginas e arquivamento. Com a informatização, cerca de 80% das decisões passaram a ser tomadas automaticamente para os casos mais simples e o tempo exigido para decidir outros casos caiu de cerca de 12 a 15 meses para 3 a 5 meses(51).

Como até 1995 os contribuintes ainda tinham que manter os documentos em papel arquivados, a IRAS empreendeu o próximo passo, que foi introduzir o arquivamento eletrônico, que foi feito por telefone. A eliminação do papel reduziu o tempo necessário para processar todos os pedidos e tomar as decisões necessárias, melhorando a eficiência do serviço prestado. A fase seguinte foi uma ampliação da etapa anterior, com a introdução do e-filing, isto é, o arquivamento de documentos diretamente pela via eletrônica. Alguns contribuintes, entretanto, sentiam-se seguros com a confirmação visual do documento impresso, pelo que a diminuição do uso da base física para estes documentos foi um processo paulatino, e não abrupto.

Em 1996 executou-se outro sistema, que permitiu que o contribuinte tirasse dúvidas diretamente com o funcionário sobre questões tributárias, denominado de Inland Revenue Integrated System (IRIS). Este sistema é equipado com tecnologia de ponta e dispõe de uma base de dados integrada sobre os principais tributos. O atendimento é disponível 24 horas, com atendimento automático para informações sobre o imposto de renda e de propriedade, que todos os contribuintes podem acessar por meio de uma senha. Cerca de 43% das dúvidas são satisfeitas pelo sistema de voz eletrônica, embora os funcionários ainda tenham que responder a cerca de 400.000 dúvidas por ano(52).

Há uma grande preocupação em tornar estes sistemas atraentes para o contribuinte, de modo a garantir sua eficácia. É possível, desta forma, que o acesso eletrônico apresente-se de forma suficientemente clara para que o contribuinte observe se há erros que deve corrigir nas informações prestadas. De outra parte, o empregador do contribuinte pode fornecer diretamente as informações ao IRAS e tudo que o pagador deve fazer é confirmar com um clique. Além disso, como o pagamento de dividendos pelas empresas localizadas em Cingapura deve ser feito por meio de um órgão central (o Central Depository), é este quem presta diretamente as informações ao Fisco. Tem-se tornado desnecessário, então, que os contribuintes cuja renda derive de salário ou de dividendos se preocupem em informar detalhes a cada declaração.

Além de prestar informações pela via eletrônica, o próprio pagamento do tributo pode também ser feito por ela. Isto se opera caso o contribuinte opte pela dedução direta do tributo de sua conta bancária, o que pode ser feito de forma parcelada, sem juros, ao longo do ano, tendo por base os valores auferidos no ano anterior.

Algumas das próximas etapas de expansão dos planos da IRAS e do IRIS dizem respeito a uma conta eletrônica personalizada para cada contribuinte, além de estender o e-filing para empresas e para as notificações tributárias sobre a propriedade. Relevante também é a proposta de que o contribuinte se credite instantaneamente com as deduções decorrentes de doação para caridade.

A relação entre o contribuinte e a autoridade tributária alterou-se ao longo deste processo. Em linhas gerais, pode-se apontar que a principal alteração decorreu da substituição do "princípio da desconfiança". As informações prestadas pelo contribuinte são tidas como corretas, o que vem a se somar aos esforços de aumentar o grau de cumprimento voluntário das obrigações tributárias.

Isso não significou, porém, diminuição nas auditorias realizadas. Pelo contrário, o número de funcionários que se desincumbiu de funções improdutivas existentes na fase anterior à inserção das tecnologias na arrecadação pôde passar a se dedicar às auditorias e investigações de forma mais intensa. A Audit Division viu crescer seu número de funcionários de 20, em 1993, para 200, em 1997, de um total de 1.600 funcionários da IRAS(53).

Bird aponta algumas lições aprendidas com o caso de Cingapura que merecem ser consideradas(54). Importa ter em conta o grau de apoio dos líderes políticos (que devem ser mostrar fortemente comprometidos e capacitados para apoiar reformas por um período adequado de tempo), é crucial desenvolver um plano estratégico e é preciso que haja uma autoridade independente de nomeações partidárias apta a contratar funcionários capacitados. Faz se necessário também: estruturar a Administração Tributária de modo que esta se mostre apta a cumprir suas funções; reduzir o potencial de corrupção por meio da automatização e do aperfeiçoamento de sistemas de controle e auditoria; mudar a atitude face ao contribuinte, incentivando a cordialidade e a facilitação do pagamento; utilizar a tecnologia da informação para reduzir a quantidade de papel.


Artigo na íntegra em: http://www.fiscosoft.com.br/main_index.php?home=home_artigos&m=_&nx_=&viewid=256299&o=4
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