Por Antônio Sérgio Valente
Nos artigos anteriores, vimos que a maioria das modalidades ilegais de evasão, embora continuem na praça, vêm perdendo participação no total dos vazamentos tributários, em face da concorrência com formas mais recentes de evasão, mormente na última década. Dentre estas, seguramente a guerra fiscal é das mais relevantes.
Guerra Fiscal
A evasão estimulada pelos próprios entes federativos, também conhecida como guerra fiscal, foi largamente ampliada. Ocorre quando, sem autorização do CONFAZ, certa UF concede uma redução de alíquota ou base de cálculo, um crédito outorgado, um financiamento do tributo a perder de vista, enfim, alguma forma de desoneração. Tudo para atrair empresas de outras regiões. Ainda que os migrantes percam escalas econômicas, elevem custos de logística, passem a operar com menor produtividade, o incentivo tributário em muitos casos funciona como uma boa compensação.
Em geral, essa opção é exercida à luz do dia, como se não houvesse nenhum óbice legal, como se o mercado tributário fosse livre, embora por lei não o seja, e embora haja situações, e não são poucas, em que o contribuinte chega a simular o processo de fabricação alhures, no todo ou em parte. É como se tudo valesse a pena, quando a vantagem tributária não é pequena — numa paródia de Fernando Pessoa.
Claro que com a guerra fiscal o agregado das arrecadações estaduais decresce, e leva na garupa a ineficiência econômica do setor privado: custos industriais não tributários de maior monta (logística, triangulações, mão de obra menos especializada, condições climáticas desfavoráveis, maiores despesas administrativas de controle, comunicação e deslocamento de pessoal, elevação onerosa da incerteza jurídica, etc).
Também os custos públicos se elevam: deterioração de estradas, necessidade de maior fiscalização de fronteiras e de combate a simulacros interestaduais de empresas, mais litígios fiscais e jurídicos com contribuintes e com outros entes da federação, mais tratativas para aparar desgastes políticos, e por aí vai. Os efeitos da guerra fiscal são extremamente nefastos para o país como um todo.
É de se notar que quanto mais complexo e escorchante o sistema tributário for, mais guerra fiscal ensejará, eis que mais atrativa esta se torna para o contribuinte. E quanto mais a guerra se expande, mais danos causa aos erários agregados (estaduais e municipais), que, por sua vez, exigem mais complexidade e escorcha compensatórias. Ou seja, é um círculo vicioso e destrutivo.
A guerra fiscal ocorre não só quanto ao ICMS, mas também quanto ao IPVA e ao ISS. O problema é tão grave que até mesmo a União, que parecia por definição alheia ao litígio, entrou na briga, e de início não foi para apartar, mas para elevar a sua própria arrecadação: deslocou a ênfase nos impostos para as contribuições, eis que aqueles, por determinação constitucional, têm de ser partilhados com os entes federativos (Estados e Municípios), mas as contribuições não. Só mais recentemente é que o governo federal tem manifestado interesse em jogar água fria na fogueira, pois percebeu que as demandas sociais são muitas e o país não pode perder arrecadação agregada, produtividade e economias de escala.
A proposta de unificação das alíquotas interestaduais do ICMS em 4% — que mitigaria a guerra fiscal, talvez até a extinguisse, pois retiraria munição dos entes guerreiros, teriam menos ‘argumentos’ para aliciar empresas à migração — traria perdas para os Estados exportadores líquidos (em termos de balança interestadual). Há quem diga que os inviabilizaria economicamente. Isto só não ocorreria porque o governo federal se propunha a cobrir as perdas durante vinte anos, por meio de um fundo compensatório. E mesmo assim, apesar desse seguro-arrecadação, não houve acordo. Exatamente porque muitos entendem que a guerra fiscal é mais lucrativa do que as vantagens que teriam no quinhão da partilha do ICMS interestadual.
Quem sabe o acordo até saia em algum momento, mas em outros termos, não mais com alíquota interestadual unificada em 4%. E, neste caso, convenhamos, se houver outras alíquotas superiores, a guerra fiscal continuaria, talvez com menos força, mas haveria ainda muita munição para disparar, pelo menos por um bom tempo, se admitirmos a hipótese, já cogitada, de convergência gradual das alíquotas para uma possível unificação no futuro. Vale dizer, essa segunda alternativa talvez trouxesse ainda mais complexidade e incerteza ao sistema tributário brasileiro e não resolveria o problema da guerra fiscal.
Todavia, algo precisa ser feito, pois esse clima não é nada bom para a economia. Quando as regras do jogo não são claras, quando a incerteza jurídica paira como espada ameaçadora, a decisão de investir se retrai, os empresários optam por importar, e deixa de haver crescimento industrial.
Não há dúvida de que a proporção entre origem e destino precisa ser revista, pois ela é estática constitucionalmente, não leva em conta as pujanças dinâmicas das regiões, nem os volumes bilaterais do comércio interestadual, sequer as diferenças internas entre Estados vizinhos.
A configuração atual de origem-destino enseja uma série de problemas, sobretudo quando entram na equação, importando de outra UF, o consumidor pessoa física e a empresa do Simples Nacional. Também há problemas operacionais, pois atualmente as relações federativas favorecem a evasão, e não só através da famigerada guerra fiscal, mas também da sonegação propriamente dita, sobretudo por meio do turismo documental de fronteira (mercadorias vendidas no mercado interno da UF, mas faturadas como se fossem para além da divisa, a alíquotas menores, portanto), e a geração de créditos frios numa UF para aproveitamento em outra, hipótese em que a UF de origem, por não ser atingida, não tem muito interesse de impedir com celeridade a ocorrência, declarando inidôneo o seu jurisdicionado.
Essas questões precisam ser enfrentadas com inteligência por uma Reforma Tributária específica do ICMS. Mais adiante, nesta série, faremos uma proposta para corrigi-las.
Em síntese, é imprescindível que se ponha fim à guerra fiscal praticada em tributos como ICMS, ISS e IPVA, que se debruce sobre a questão das Contribuições Sociais (cuja partilha deve receber tratamento idêntico ao dos tributos), e que se revise o pacto federativo. No próximo artigo abordaremos a evasão tributária planejada. Até.
asgvalente@uol.com.br
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