Antônio Lopes de Sá


Verdade e clareza já eram princípios amplamente reclamados para as demonstrações contábeis há mais de meio século, quando o professor Jenny escreveu seu tratado sobre Fraudes em Contabilidade .

“Toda alteração da verdade é uma falsificação” asseverou o mestre referido.

Louve-se a conceituação referida, mas, acrescente-se que igualmente é vicioso tudo aquilo que enseja a prática da alteração.

Apesar das advertências dos ilustres intelectuais da Contabilidade, todavia, os grandes desastres financeiros motivados pelos calotes internacionais que vitimaram milhões de pessoas no fim da década de 20 e começo de 30, não interromperam a criminosa atuação dos falsários, amparada por manipulações de informações.

A partir da década de 60, destacando-se 1968 e na década de 70 chegando a níveis exacerbados, as fraudes nos Estados Unidos, segundo Singleton, Bologna, Lindquist, atingiram o nível do preocupante em âmbito social .

Os impactos de 2008 e 2009 derivados de milhares de práticas fraudulentas motivaram grande número de investigações, mas não impediram que nesse mesmo período muitos trilhões de euros e dólares de perdas vitimassem investidores, contribuintes de impostos e o povo.

Apenas em um setor, segundo o noticiado “o FBI anunciou que o número de investigações de fraudes com hipotecas superava os 1,6 mil casos no fim do ano fiscal de 2008, que terminou em 30 de setembro, em contraste com as 881 ocorrências registradas dois anos atrás. Em acréscimo, foram abertas 530 investigações de fraudes corporativas, informou a policia federal americana.”

Muitos milhares de falsidades e calotes se sucederam ao curso do tempo, bastando recordar, por expressivas, as denunciadas no parlamento estadunidense, especialmente as da década de 70 e de fins daquela de 90.

Lamentavelmente há uma “tradição de fraudes” ocorridas com a proteção das informações contábeis eivadas de vícios.

Tal como o acusado oficial e publicamente ocorreu um conluio entre especuladores, auditores e entidades de classe contábil na produção de normas, visando a manipular demonstrações contábeis, acobertado ainda por pressões sobre órgãos governamentais.

Contundente foi a manifestação do Senado dos Estados Unidos sobre a questão em relatório de comissão parlamentar de inquérito:

O AICPA é organizado de uma forma que permite que as partes controlem sua estrutura de sustentação para manter seu controle sobre a organização. As oito maiores empresas de auditoria controlam efetivamente a estrutura e usado é por elas o AICPA como anteparo de seus interesses coletivos.

E ainda sobre as transnacionais de auditoria (na época eram oito) afirma o relatório:

Através do seu poder, elas são capazes de influenciar políticas governamentais e os procedimentos que possam afetar as atividades dos seus clientes corporativos.

Os efeitos da crise calamitosa que explodiu em 2008, acobertada pela incompetência das normas contábeis em não denunciar os riscos, mas, sim permitindo a alteração da verdade, foram os mais desastrosos, com impactos sociais fortíssimos em alguns países nos quais os indices de desemprego em 2009 alcançaram quantitativos considerados expressivamente gravosos

A imprensa européia em fevereiro de 2010 denunciava taxas de desocupação de mão de obra em Portugal de quase 10%, na Espanha de quase 20%, na Irlanda quase 12%, na Hungria mais de 10% , assim como problemas sérios em determinados setores, como o automobilístico.

A questão normativa, pois, em face da fraude, não é apenas de âmbito particular, mas, sim, pode tornar-se fator antisocial que deflui do uso inadequado da Contabilidade, quando se distorce a verdade, quando se afasta das doutrinas científicas e as corrompem, posto que missão da ciência seja a defesa da realidade objetiva.

Sobre a dramática situação em Portugal, em decorrência dos males do calote financeiro estadunidense, em fevereiro de 2009 já havia escrito o emérito Fernandes Ferreira :

“As preocupações que tenho sobre a actual má situação do País (e do Mundo) conduz-me a reflexões à volta da crise, acentuando pontos negativos, preocupado que estou por não os ver eliminados. Ao escrever e alertar admito que haverá pessoas que afirmarão que estarei divagando sobre o que todos estarão a observar, que nada se acrescenta.

Independentemente de admitir que não saio de “lugares comuns” continuarei a insistir, em especial porque a terrível situação de crise que se vive em todo o Mundo e em Portugal exige revisões de condutas muito comuns, ou seja, passar-se a uma maior preocupação com o que se vê acontecer aos outros, não se intervindo ou reclamando-se apenas quando os problemas nos tocam também à porta.” “Em consequência das ocorrências negativas descritas, as empresas em crise acabam por ficar todas exangues, em falência. Assim, tudo soçobra. Desaparecem postos de trabalho, acabam todos no desemprego…”

O grande calote financeiro mundial de trilhões de euros e dólares referido pelo ilustre autor citado teve inequivocamente a contribuição efetiva de informações falsas; não tivessem elas existido e não teriam sido iludidos tantos aplicadores, nem provocado tamanhos investimentos em empresas com ativos podres e resultados fictícios.

A responsabilidade dos informes contábeis perante a estabilidade social das nações é deveras relevante e normas tais como as que têm sido difundidas e aplicadas (sob a denominação de “internacionais”) não assumiram tal responsabilidade.

Isso o que igualmente confirmaram expoentes da intelectualidade e segundo o que o parlamento estadunidense já havia advertido.

Proeminente administrador que teve sob sua responsabilidade a maior seguradora da França, a AXA, Henri de Castries afirmou que “A Europa não deveria ter transferido o controle das normas contábeis para o International Accounting Standards Board (IASB), com sede em Londres”; adicionalmente afirmou que o IASB "não presta contas a ninguém", e as normas contábeis representam "um instrumento de soberania política" "importante demais para ser deixado a cargo de contadores"; tal matéria foi difundida por Scheherazade Daneshkhu e Jennifer Hughes, do “Financial Times”, de Paris e Londres em 30/09/2009 (Tradução de Mario Zamarian) veiculado na Internet, atribuindo como fonte “Valor Econômico”.

Complementa o noticiário a declaração do destacado dirigente francês: "Esse sistema cai muito bem para os bancos de investimento e cria volatilidade. Quem se beneficia da volatilidade dos mercados? - os bancos de investimento". "Recuso-me a usar o termo valor justo.” “As normas são descritas como valor imediato. Ninguém está a favor do valor injusto."

As discordâncias em relação ao movimento normativo, todavia, não se resumem nas conclusões do conceituado administrador Castries.

O “Jornal de Negócios”, de Lisboa, em 14 de agosto de 2009 estampava artigo de autor idôneo, participante do planejamento contábil oficial na década de 70 em Portugal, professor José Alberto Pinheiro Pinto, expondo total desacordo em relação aos excessos do IASB, afirmando que a “realidade” era bem diferente da sofisticada e mal redigida matéria das Normas produzidas por aquela entidade.

Em 11 de agosto de 2009, no mesmo Jornal de Negócios de Lisboa, o emérito doutor Hernani O. Carqueja já muito lamentava a mudança de orientação do sistema normativo para um dito “internacional” ao que em comentário, no mesmo veiculo e dia Rogério Fernandes Ferreira, já referido, a maior autoridade em ciências das empresas em Portugal, endossava e se dizia ainda mais rigoroso em critica.

Como a importância da critica depende daquela dos censores pode-se afirmar pela relevância do que tem sido veiculado.

A qualidade normativa contestada, todavia, não tinha reflexos negativos apenas na Europa.

O Juiz de Direito Jed Rakoff, nos Estados Unidos, passou a exigir da Comissão de Valores Mobiliários de lá (SEC) que encontrasse os culpados e os punisse pelos golpes aplicados no mercado, fato ligado às informações falsas que o sistema normativo sustentou ; a mencionada autoridade desejava saber por que as normas não barraram o crescimento dos erros que geraram a crise, ou seja, como diz a nota no jornal, porque ela não foi detectada.

“Felizmente” diz o noticiário, expressão usada no sentido de “até que enfim” se reclamava alguma coisa para pesquisar sobre a incompetência do regime normativo perante a falsidade informativa; afirmava a publicação que se esperava que a SEC americana mudasse sua política para uma de austeridade; o jornal, causticamente, fez interrogações de como o Presidente Obama pôde nomear para um cargo de fiscalização Mary Schapiro, pessoa comprometida com um sistema de corrupção financeira como o de Madoff; o jornal afirmou que se esperava mais ação que justificativas; esclareceu o “Le Monde” que o Juiz Rakoff considerou como “cínica” a atitude da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC).

Tudo isso se confirmava em matéria publicada em “The Summa”, pela Internet, pelo professor David Albrecht em fins de novembro de 2009, resultante de pesquisa pelo referido feita, informando que as IRFS (Normas denominadas como Internacionais de Contabilidade) estariam sofrendo uma séria oposição nos Estados Unidos e na Europa.

Confirmou o emérito professor referido até a hipótese de que a União Européia pudesse vir a abandonar as normas do IASB e criar as próprias como já fora declarado pela ministra das finanças da França Cristina Lagarde.

O professor Albrecht declarou-se ostensivamente contra as IRFS, como diversos outros de várias universidades estadunidenses que fizeram depoimentos no portal da Internet do referido professor.

O sistema efetivamente denunciou-se falho não só nos procedimentos do IASB, mas, também do FASB, segundo críticas que há décadas dimanavam de autoridades de expressão como, dentre várias outras ilustres e bem recentes as do Prêmio
Nobel de Economia de 2008 Paul Krugman, em nota de opinião no New York Times .

Há cerca de quatro décadas, todavia, insignes mestres dos Estados Unidos como Briloff, Zeff e outros produziram artigos, livros e conferências em favor do uso sadio da Contabilidade; lamentavelmente ouvidos moucos mantiveram-se insensíveis aos alertas e as crises foram sendo sucedidas, como outras virão se não houver uma intenção enérgica e honesta em corrigir o curso dos fatos tão amplamente criticados.

Uma descrença, entretanto, não se dissolveu quanto a correção do curso de tais anomalias, dada a pressão exercida na mídia e no setor político o grupo interessado em manipular balanços.

Assim, por exemplo, o prestigioso jornal de Madri “El País” de 19 de julho de 2009 trazia comentário sob o título “14 mitos derrubados após dois anos de crise”, deveras preocupante.

O noticiário iniciava afirmando:

“A crise abalou o capitalismo, este necessitado de reformas urgentes que estão custando a chegar. Há risco de que o poderoso “lobby” financeiro engesse as autoridades de modo que as reformas sejam apenas como cosméticos em face da tímida recuperação de valores a receber”.

Ou seja, admitia o jornal que a crise indicava a falência de um sistema e a existência de uma expressiva influência política de grupos que estaria sendo exercida para derrubar controles, autoridades e técnicos que possam criar obstáculos; ou ainda, revelava que tudo estava sinalizando que não se desejava realmente mudar o cenário, mas, apenas “dar aparência de que se estava mudando”.

Informou o periódico, todavia, que alguns famosos técnicos estavam a reclamar maior transparência nas informações sobre a situação das empresas, em vez de se continuar a enganar o público com resultados falsos amparados em concessões normativas.

Oferecendo a opinião de intelectuais eleitos pelo jornal o noticiário foi categórico em afirmar que as votadas normas contábeis não mudarão o cenário enganador que levou à crise; isso por que o normatizado até aqui, pelos efeitos notoriamente causados, evidenciou-se como incompetente para que a transparência das situações empresariais se operasse sem riscos.

Denunciando vários mitos derrubados com a crise, carente de reformas para que se altere o sistema capitalista canibal, dentre eles e no campo contábil, enfatiza “El País” o concernente a normas e ao comportamento de auditores; lança a suspeição de ocultação de fraudes e falhas de clientes, uma vez que por isso foram remunerados (assim está publicado, induzindo a crer na “falsa independência”, evidenciando o fato como mais um mito derrubado).

Por ter influência no regime das demonstrações informativas a publicação referida ressalta que foi igualmente um grande erro dar-se demasiado crédito ao mercado (tese do Valor Justo), em virtude deste ser manobrável; ou seja, ao se manipular o mercado se mascaram informações contábeis quando estas se apóiam na imprudência (e esse é outro mito derrubado).

Afirmou ainda “El País”, em favor da tese que gerou a matéria editada, que a prevalecer o estado atual de coisas o que se está armando é outra “borbulha” que poderá vir a explodir brevemente; ou seja, coloca dúvida sobre as providências que se tomavam no sentido de que pudessem vir a resultar em um sincero saneamento; acusou, sim, os fatores “privilégios” e “impunidades” como máximas colocadas a serviço de um sistema cruel desonesto e especulativo.

A confusão estabelecida no campo das “convergências”, a péssima didática das Normas, desrespeito aos preceitos lógicos e a má qualidade das mesmas (em face da ciência e do critério de legalidade); a pressa e a pressão exercida na implantação das “modificações”; as marchas e contra marchas de negociações sobre aplicações de procedimentos; a muita publicidade paga; a conivência de entidades, sustentadas com altas verbas e até a interveniência do Banco Mundial (conforme anunciado), tudo isso formou um complexo que a história certamente julgará e que tanto tem sido objeto de advertência de mestres e de parte de uma imprensa preocupada com a realidade.

A denúncia do prestigioso jornal, embora não exclusiva, mas, bem recente, confirma tudo o que exaustivamente tenho tentado fazer ver aos meus leitores, alunos e colegas, em razão das lesões à profissão contábil; enquanto isso, por outros lados “ouvidos moucos” de entidades públicas permitem e até ajudam o prosseguimento da malsinada marcha.

Com acidez de palavras, todavia, ainda além vai o “El País”, levantando a tese de que os Bancos receberam altas somas do poder público para que se recuperassem, mas que julgados não foram pelas perdas causadas à sociedade.

Finalmente, atribuindo a declaração a um técnico da IESE o jornal enfaticamente insere em seu comentário que se “força a mentir para lucrar-se cada vez mais”.

Ou seja, insinuou o prestigioso jornal que a falsa informação contábil sobre a situação das empresas é veículo na sustentação de um capitalismo canibal o que é deveras lamentável, pois, o uso do conhecimento para fins viciosos é além de aético uma tragédia do ponto de vista social e humano.

http://www.lopesdesa.com.br/
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