"A máquina da Receita foi desmontada"

Para o ex-secretário Everardo Maciel, a politização de um órgão que deveria ser 100% técnico ainda vai custar caro ao país Maciel: "O grande erro foi nomear para a direção pessoas cuja qualificação era a atividade sindical" Por Angela Pimenta | 03.09.2009 | 00h01 Há cerca de um mês, a troca da cúpula da Receita Federal deslocou o noticiário sobre a instituição das seções de economia dos jornais para as de política. A ordem de demissão de Lina Vieira do posto de secretária-geral, nomeada 11 meses antes pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, teria partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, descontente com a queda da arrecadação de impostos. Foi a segunda vez, em menos de um ano, que a Receita Federal, órgão tido como uma ilha de excelência técnica no governo -- e que se pensava que fosse preservado de conflagrações políticas --, teve seu comando substituído. Um ano atrás, Jorge Rachid, antecessor de Lina, foi demitido por ser considerado um remanescente do período tucano e por se comportar com independência em relação a Mantega. Não houve, porém, tanto barulho na ocasião. Lina, ligada ao PT, partido do governo, saiu atirando e teve o apoio de cerca de 60 funcionários do órgão. O novo secretário, Otacílio Cartaxo, ex-adjunto de Lina, após um mês como interino, foi confirmado no cargo e tenta aplacar a disputa interna desencadeada desde então. Para traçar um panorama dos impactos causados pela politização da Receita, EXAME entrevistou Everardo Maciel, secretário de 1995 a 2002. Embora não seja um observador neutro, Maciel é respeitado como técnico e conhece profundamente as entranhas da máquina. A Receita Federal sempre foi vista como uma instituição técnica, protegida de disputas políticas. Por que isso mudou? Já houve casos de aparelhamento no passado. Mas não no nível que vimos na última gestão. Existiu algum tipo de ingerência político-partidária no final do governo Itamar Franco, com a participação dos sindicatos. Mas isso se dava de forma discreta e não pode ser comparado com o quadro atual. Quando fui convidado pelo ministro Pedro Malan para assumir a Receita Federal, em 1995, relutei em aceitar o convite. Ele insistiu e, com o apoio direto do presidente Fernando Henrique Cardoso, eu disse a Malan que tinha uma única condição para assumir, a de que as nomeações na Receita fossem realizadas pelo secretário, sem nenhuma ingerência política. Mas o que está por trás das disputas a que estamos assistindo? Os critérios adotados na minha gestão, e que foram mantidos pelo Jorge Rachid (secretário da Receita no período de 2003 a 2008), determinavam que as funções deveriam ter caráter estritamente técnico e que a escolha de alguém deveria se dar por mérito profissional. Não sem razão, o Rachid, na minha gestão, passou por vários cargos até se tornar secretário adjunto. No começo do governo Lula, chegou ao posto de secretário. Essa progressão fazia com que as pessoas adquirissem experiência administrativa para ser promovidas. Mas, na gestão de Lina, quem assumiu cargos de liderança chegou até lá por uma questão política, sem a bagagem técnica. No caso deles, o objetivo era o poder. E eles estavam lutando para manter esse poder. Essa mudança está, de alguma forma, ligada à queda de arrecadação, motivo alegado para a demissão da ex-secretária Lina Vieira? Sim. O grande erro foi nomear pessoas para cargos de direção cuja qualificação principal era uma atividade sindical passada. Esse era o critério básico usado pela ex-secretária. Não que a participação na atividade sindical seja um impeditivo para assumir um cargo de liderança na Receita. Mas, se não deve ser um impeditivo, tampouco deve ser um qualificativo. Um bom auditor ou analista devem ter qualificação técnica e uma compreensão clara de que ocupam uma função de Estado -- e não de governo. Os cargos também não devem ser ocupados por interesses corporativos. A Receita deve servir ao Estado e à sociedade. As alegações de Lina Vieira para a queda de arrecadação foram a crise econômica e o aumento das desonerações fiscais promovidas pelo governo... É evidente que a crise econômica afeta negativamente a arrecadação. Mas é preciso fazer algumas ponderações. A primeira é que essa crise tem sido duradoura, mas não é a primeira da história do país. O governo Fernando Henrique atravessou várias crises econômicas e nem por isso a arrecadação caiu. Também tivemos antes uma crise de menor porte no governo Lula. Além disso, precisamos considerar que hoje a queda na arrecadação é maior que a do PIB. É evidente que não se pode esperar uma proporcionalidade exata entre o crescimento do PIB e o da arrecadação. Mas esse é um fato a ser examinado. Quanto às desonerações fiscais, elas são pontuais e pequenas. Estamos falando de desoneração de IPI, de cuja arrecadação 57% ficam com estados e municípios. Logo, o resultado fiscal tem pouca expressão para a União. Na verdade, a desoneração afetou mais os estados e os municípios do que a União. Outro argumento para a demissão da secretária e para o estopim da crise foi uma suposta pressão para a redução da fiscalização dos grandes contribuintes. Nos últimos meses, essa fiscalização, de fato, havia se tornado mais rígida? Não. O exemplo mais visível é o enorme atraso na entrega pela Receita do programa da declaração do lucro real de empresas -- aquilo que veio a ser chamado de declaração dos grandes contribuintes. No meu tempo e na gestão do Rachid, fizemos um esforço para manter os prazos em dia. Mas, neste ano, as declarações que deveriam ter sido entregues até 30 de junho tiveram o prazo adiado para 16 de outubro, porque o programa só ficou disponível para as empresas recentemente. Além disso, no primeiro semestre a fiscalização dos grandes contribuintes teve resultado inferior ao do mesmo período do ano passado, quando houve dois meses de greve na Receita. Isso aconteceu por falta de disciplina administrativa. Os projetos da Receita, como o de uso de inteligência artificial, foram afetados pela confusão recente? Sim. A fiscalização foi desmontada. A coordenação de fiscalização, a Cofis, ficou às moscas. Toda a programação de trabalho destinada a estabelecer metas e organizar a fiscalização foi suspensa. Com a retomada do crescimento econômico, a arrecadação da Receita não subirá naturalmente? Certamente a arrecadação voltará a subir. Mas a arrecadação não cresce sozinha. A Receita não é um equipamento que possa ser manejado por piloto automático. A arrecadação exige um trabalho de concepção de políticas fiscais e de implementação dessas políticas, e isso o computador não faz. O computador é para lidar com as informações que devem ter tratamento de massa. Mas jamais será possível prescindir da participação humana na tomada de decisões e, sobretudo, na concepção de políticas. Portanto, tenho dúvidas sobre o quanto a arrecadação vai subir. A desestruturação de instituições é rápida de fazer, mas sua recuperação é demorada. Segundo profissionais da área de tecnologia, demandará de um a dois anos para a recomposição dos sistemas que sofreram estrago. Isso é uma lástima, porque até então a Receita era tida no país e no mundo como uma referência. Agora, começa a perder espaço em virtude das atitudes administrativas malsucedidas. Com as demissões voluntárias e as exonerações promovidas pelo atual secretário, Otacílio Cartaxo, estima-se que a Receita tenha perdido 60 profissionais de postos-chave. Que impacto imediato isso pode ter? Ao assumir o posto, Lina demitiu um número maior de pessoas. E promoveu a sucessão dessas pessoas, o que era legítimo, com o poder que lhe foi conferido como secretária da Receita. Portanto, o segundo escalão que trabalhava com o ex-secretário Rachid já não estava lá. Ele foi todo afastado para dar lugar à equipe montada pela ex-secretária. O que há agora é uma espécie de reversão à situação anterior. Os três superintendentes escolhidos para suceder aos que se afastaram têm alta qualificação técnica. Eles estão preparados para a função. Não vai levar tempo para refazer os quadros? Estamos falando de dez superintendentes. Deles, a rigor, só três pediram demissão. Para os escalões inferiores, a Receita tem quadros de reposição. A população de servidores hoje é muito grande. No meu tempo eram 15 000. Hoje, com a fusão com a Receita Previdenciária, há mais de 20 000 funcionários. O novo secretário da Receita, Otacílio Cartaxo, tem condições de exercer o cargo efetivamente? O Otacílio é uma pessoa equilibrada. Nas circunstâncias atuais, a Receita precisa de alguém como ele, porque há uma espécie de conflagração, causada por questões de rotina administrativa que passaram a ser objeto de matéria política, o que nunca aconteceu. Com experiência e com o perfil conciliador, o Otacílio está talhado para o exercício do cargo. http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0951/economia/maquina-receita-foi-desmontada-495980.html
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Comentários

  • Enviado por Everardo Maciel - 7.9.2009| 14h29m

    Artigo

    A politização do Fisco

    Um traço evidente de atraso político de um país é o preenchimento indevido de cargos técnicos na administração pública por políticos ou por pessoas por eles indicadas.

    No Brasil, as raízes dessa deformação se encontram na anarquia político-partidária. Frequentemente, a eleição de governantes não guarda correspondência com os eleitos para as casas legislativas, o que obriga a construção de esdrúxulas alianças, sob o farisaico manto da governabilidade.

    A viabilidade dessas alianças reclama a prática do fisiologismo, que se faz acompanhar do aparelhamento e das negociatas associadas à aprovação e liberação de emendas parlamentares, candidamente qualificadas como transferências voluntárias.

    As primeiras vítimas dessas malsinadas práticas são os princípios da moralidade e da eficiência, que deveriam reger a administração pública, nos termos do art. 37 da Constituição.

    Não se entenda que blindar a administração pública contra as mazelas da política seja instituir territórios autônomos à observância das diretrizes governamentais, legitimadas pela vontade popular, mas tão somente estabelecer limites entre objetivos políticos e meios técnicos.

    A política brasileira, como a de inúmeros outros países, é demasiado condescendente com práticas iníquas, tais como a injúria, a manipulação fraudulenta de informações, a coalizão entre forças programaticamente antagônicas, a competição abusiva fundada na supremacia absoluta do interesse individual ou grupal sobre o público.

    A politização da administração pública, tida como a indevida ingerência em áreas técnicas, produz uma ampla disseminação dos indesejados vícios da política. Toda questão técnica passa a ser vista como instrumento vinculado à ação partidária.

    No território da política, as ações invariavelmente produzem reações. Muitas delas tão nocivas quanto as que lhe deram causa.

    O corporativismo, por exemplo, é uma reação perniciosa à ingerência política. Aqui, não se exploram suas origens vinculadas ao fascismo italiano. Observa-se apenas que ele traduz a subordinação do interesse público ao de um grupo.

    Nada tão lamentável como a eleição de autoridades públicas pela própria corporação. Ressalvadas situações especialíssimas, é quase inevitável que esse processo seja contaminado pelas deformações da política convencional.

    Não seria estranho, além disso, se particulares passassem a se interessar pelo assunto, com todas as implicações daí decorrentes. Percebe-se, a propósito, um suspeitoso fascínio que os cargos aduaneiros exercem sobre políticos e empresários.

    Em julho de 2000, assisti a uma conferência proferida, em Washington, por Larry Summers, hoje chefe da Assessoria Econômica do Presidente Obama e à época Secretário do Tesouro, sobre a reestruturação do IRS (Internal Revenue Service).

    O conferencista assinalou que a iniciativa dava curso a reformas realizadas na década de cinquenta, quando foi eliminada qualquer forma de ingerência política no órgão responsável pela administração tributária federal nos Estados Unidos.

    Fiquei a refletir sobre o Brasil. Sabia que, desde o governo do Presidente Fernando Henrique, a Receita Federal estava imune à ingerência política, tanto quanto há muito tempo já se encontravam inúmeras administrações tributárias estaduais e municipais.

    Sabia, contudo, que essa realidade estava condicionada à prevalência da sempre decantada e, também, volúvel vontade política.

    O Presidente Lula, prudentemente, manteve essa orientação até que, por insondáveis razões, resolveu ceder à tentação política, afastando o competente Secretário Jorge Rachid.

    Essa saída deu lugar a mais ampla substituição de quadros dirigentes da Receita Federal de que se tem notícia. Técnicos de reconhecida competência e probidade foram afastados, às vezes de forma humilhante, pela simples razão de terem contribuído em administrações passadas.

    Foram sucedidos por profissionais, cuja lisura não se põe em dúvida, conquanto tenham sido escolhidos pela mera condição de pertencerem a uma facção sindical minoritária.

    A política pousou na Receita.

    A imprensa notificou à profusão fatos lamentáveis, como a insistência em identificar razões pífias para o afastamento da equipe que sucedeu à administração de Rachid: ora, era a prioridade conferida à fiscalização dos grandes contribuintes, nem que para isso tivessem que ocultar o passado ou manipular estatísticas; ora, a pressão exercida por contribuintes insatisfeitos, ainda que não se nomeasse quem eram eles e de que forma agiriam, parecendo reproduzir o episódio das forças ocultas, alegado por Jânio Quadros ao renunciar.

    Afora isso, estapafurdiamente foram concedidas 30 mil licenças a funcionários, para participação em eventos sindicais.

    Em boa hora, o governo parece estar trazendo a Receita Federal de volta aos trilhos. Não vai ser fácil, nem rápido. O tempo necessário para reconstruir costuma ser maior que o despendido para destruir.

    De qualquer forma, deve-se ficar atento, pois como lembrava Nelson Rodrigues: “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”.

    Everardo Maciel é ex-Secretário da Receita Federal

    http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2009/09/07/a-politizacao-...
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