25 milhões de fiscais

Ao oferecer prêmios e transformar o consumidor em “fiscal tributário” com a Nota Fiscal Paulista, o governo de São Paulo aumenta a arrecadação em quase 1 bilhão de reais e fecha o cerco à sonegação Por André Faust | 11.06.2009 | 00h01 Revista EXAME – Ninguém, em lugar nenhum do mundo, gosta de pagar impostos. Por isso, sabe-se que a sonegação costuma aumentar ou diminuir dependendo do risco de ser pego pelo Fisco. Também é sabido que a maioria das pessoas gosta de dinheiro, principalmente se para ganhá-lo não for preciso ter muito trabalho. Essas três obviedades foram fundamentais para que o governo do estado de São Paulo criasse o mais engenhoso programa de combate à sonegação já posto em prática no país. Trata-se da Nota Fiscal Paulista, lançada há um ano e meio e cujos resultados, num país conhecido pela cultura da sonegação, impressionam. Só no ano passado, estima-se que o programa tenha rendido uma arrecadação extra de 800 milhões de reais. É um dinheiro que fluía pelo ralo da chamada “informalidade” – um jeito bem brasileiro de se referir à competição ilegal. O grande trunfo da Nota Fiscal Paulista foi conseguir transformar milhões de consumidores em “fiscais” da Fazenda paulista. Mais de 25 milhões de pessoas já pediram pelo menos uma vez que seu CPF (ou CNPJ, pois recentemente o governo autorizou empresas com até 240 000 reais de faturamento anual a participar do programa) fosse incluído em notas fiscais de aquisição de bens e alguns serviços. Ou seja, contribuíram para que a compra feita fosse registrada normalmente segundo as regras do Fisco. Programas de incentivo desse tipo foram tentados inúmeras vezes – sem grandes resultados. Mas a combinação entre avanço tecnológico e contrapartida correta – mais dinheiro no bolso do cidadão – mudou a história. A contrapartida é obtida de duas formas: por meio da restituição de parte do imposto pago no consumo de bens e serviços e em sorteios mensais de prêmios em dinheiro. O técnico em informática Gedson de Mattos Nunes é um dos fiscais voluntários do governo paulista que se transformaram em garotos-propaganda da causa. No dia 3 de junho, Nunes recebeu – com a devida solenidade e publicidade – um cheque de 200 000 reais das mãos do governador José Serra. O prêmio, com o qual ele pretende quitar o financiamento do apartamento onde mora, na capital paulista, é o de maior valor distribuído pelo programa. A maior parte dos prêmios sorteados é de valor baixo, variando de 10 a 100 reais. Mas é com o apelo de prêmios maiores – como o recebido por Nunes – que o governo paulista incentiva a população, em campanhas de TV e rádio, a pedir suas notas. Até agora, o estado de São Paulo distribuiu 1 bilhão de reais em restituições e prêmios aos participantes do programa. Esse bilhão de reais separa a Nota Fiscal Paulista de antigas fórmulas para inibir a sonegação com a participação do consumidor. Era comum que campanhas do gênero apelassem para o senso de cidadania. A nota fiscal deveria ser exigida para que os tributos fossem pagos e, dessa forma, o governo tivesse recursos para investir em escolas, hospitais, estradas, qualidade de vida etc. Embora correto, esse tipo de apelo tornou-se inócuo num país com tamanha tradição de descalabros feitos com o dinheiro público. A recompensa em dinheiro da Nota Fiscal Paulista criou o que os economistas chamam de “alinhamento de interesses”: o interesse individual é usado para ajudar a sociedade como um todo. Para participar do programa, os consumidores paulistas têm de fazer duas operações simples. A primeira é exigir nota fiscal identificada com seu CPF a cada compra. A segunda é se cadastrar no site da Fazenda para acompanhar o extrato dos créditos obtidos em cada compra. Tudo é feito pela internet, a tecnologia que uniu as três pontas – vendedor, consumidor e Estado – e deu transparência e rapidez ao processo. O consumidor pode pedir para receber a restituição dos créditos em sua conta bancária, pode transformar o valor em abatimento do IPVA, repassá-lo a terceiros ou doá-lo a uma instituição de caridade. Para participar dos sorteios, é preciso trocar as notas fiscais por cupons digitais – cada 100 reais acumulados em notas dão direito a um cupom. A engenhosidade do programa reside justamente nesse ponto. Ao fazer o acompanhamento digital das notas para restituir créditos ou para trocá-las por cupons, os consumidores verificam se os estabelecimentos estão, de fato, enviando as notas à Fazenda. “Acompanho nota por nota no site”, diz Eliana Verginio, moradora de Rio Claro, premiada recentemente num sorteio de 80 000 reais. Desde o início do programa, a Fazenda já recebeu 50 000 reclamações, a maioria de consumidores que não encontraram notas lançadas em suas contas no site da Nota Fiscal Paulista. Ao fazer o cruzamento de dados fiscais informados pelo varejo com as reclamações de consumidores, o governo paulista pôs em marcha um mecanismo antissonegação. “Hoje temos controle do movimento econômico de todo o setor varejista”, diz o secretário da Fazenda de São Paulo, Mauro Ricardo Costa. Atualmente, todos os setores do varejo são obrigados a remeter à Secretaria da Fazenda as notas fiscais emitidas mensalmente. Em 2008, as autuações a empresas que não recolheram ICMS somaram 15 bilhões de reais, ante 13 bilhões totalizados em 2007. Tais resultados despertaram o interesse de outros governos estaduais. Em novembro do ano passado, Alagoas lançou o Nota Fiscal Alagoana, nos mesmos moldes do programa paulista. Por enquanto, a Receita alagoana conseguiu 20 000 cadastros de consumidores em seu site. Até julho, todo o varejo do estado será obrigado a emitir a nota. Para os governantes, o maior apelo é o aumento da arrecadação sem grandes investimentos. Para colocar o Nota Fiscal Paulista em operação, o governo de São Paulo precisou de 30 milhões de reais. Até agora, gastou outros 40 milhões em propaganda. Só no setor de bares e restaurantes, a arrecadação com ICMS no varejo cresceu 19% em um ano de programa. No setor de vestuário e calçados, o aumento chegou a 31% no período. Atualmente, mais de 461 000 estabelecimentos – ou quase 100% dos varejistas do estado – estão obrigados a emitir a Nota Fiscal Paulista. Quem já atuava de acordo com a lei aproveita para oferecer espontaneamente a nota fiscal aos consumidores na esperança de que eles se acostumem com a ideia e passem a exigir o mesmo da concorrência. “Estamos no caminho para alcançar um ideal antigo, o da redução da carga tributária”, diz o secretário adjunto da Fazenda George Tormin. Se isso realmente vai acontecer, só o tempo dirá – a realidade no Brasil tem sido exatamente o oposto, com aumentos sucessivos na taxação. De todo modo, o programa paulista pode indicar uma alternativa no combate à sonegação – um problema de enorme proporção no país, que atravanca o crescimento econômico. Em 2008, cerca de 74 bilhões de reais deixaram de ser recolhidos pelo comércio aos cofres públicos do país, de acordo com um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. O ICMS é o segundo imposto mais sonegado, por 27% das empresas do país. Ainda segundo o estudo, 29% das empresas do setor de comércio sonegam algum tipo de tributo. Nesse cenário, as que trabalham na legalidade são duplamente penalizadas: pela alta carga tributária, que consome cerca de 36% de tudo o que é produzido no Brasil, e pela concorrência desleal com as que não pagam impostos. “A Nota Fiscal Paulista ajuda a aumentar a igualdade na concorrência, melhorando o ambiente de negócios”, diz o economista Guilherme Dietze, da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Esse é, por si só, um grande feito. http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0945/economia/25-milhoes-fiscais-476334.html

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

25 milhões de fiscais

Ao oferecer prêmios e transformar o consumidor em “fiscal tributário” com a Nota Fiscal Paulista, o governo de São Paulo aumenta a arrecadação em quase 1 bilhão de reais e fecha o cerco à sonegação Por André Faust | 11.06.2009 | 00h01 Revista EXAME – Ninguém, em lugar nenhum do mundo, gosta de pagar impostos. Por isso, sabe-se que a sonegação costuma aumentar ou diminuir dependendo do risco de ser pego pelo Fisco. Também é sabido que a maioria das pessoas gosta de dinheiro, principalmente se para ganhá-lo não for preciso ter muito trabalho. Essas três obviedades foram fundamentais para que o governo do estado de São Paulo criasse o mais engenhoso programa de combate à sonegação já posto em prática no país. Trata-se da Nota Fiscal Paulista, lançada há um ano e meio e cujos resultados, num país conhecido pela cultura da sonegação, impressionam. Só no ano passado, estima-se que o programa tenha rendido uma arrecadação extra de 800 milhões de reais. É um dinheiro que fluía pelo ralo da chamada “informalidade” – um jeito bem brasileiro de se referir à competição ilegal. O grande trunfo da Nota Fiscal Paulista foi conseguir transformar milhões de consumidores em “fiscais” da Fazenda paulista. Mais de 25 milhões de pessoas já pediram pelo menos uma vez que seu CPF (ou CNPJ, pois recentemente o governo autorizou empresas com até 240 000 reais de faturamento anual a participar do programa) fosse incluído em notas fiscais de aquisição de bens e alguns serviços. Ou seja, contribuíram para que a compra feita fosse registrada normalmente segundo as regras do Fisco. Programas de incentivo desse tipo foram tentados inúmeras vezes – sem grandes resultados. Mas a combinação entre avanço tecnológico e contrapartida correta – mais dinheiro no bolso do cidadão – mudou a história. A contrapartida é obtida de duas formas: por meio da restituição de parte do imposto pago no consumo de bens e serviços e em sorteios mensais de prêmios em dinheiro. O técnico em informática Gedson de Mattos Nunes é um dos fiscais voluntários do governo paulista que se transformaram em garotos-propaganda da causa. No dia 3 de junho, Nunes recebeu – com a devida solenidade e publicidade – um cheque de 200 000 reais das mãos do governador José Serra. O prêmio, com o qual ele pretende quitar o financiamento do apartamento onde mora, na capital paulista, é o de maior valor distribuído pelo programa. A maior parte dos prêmios sorteados é de valor baixo, variando de 10 a 100 reais. Mas é com o apelo de prêmios maiores – como o recebido por Nunes – que o governo paulista incentiva a população, em campanhas de TV e rádio, a pedir suas notas. Até agora, o estado de São Paulo distribuiu 1 bilhão de reais em restituições e prêmios aos participantes do programa. Esse bilhão de reais separa a Nota Fiscal Paulista de antigas fórmulas para inibir a sonegação com a participação do consumidor. Era comum que campanhas do gênero apelassem para o senso de cidadania. A nota fiscal deveria ser exigida para que os tributos fossem pagos e, dessa forma, o governo tivesse recursos para investir em escolas, hospitais, estradas, qualidade de vida etc. Embora correto, esse tipo de apelo tornou-se inócuo num país com tamanha tradição de descalabros feitos com o dinheiro público. A recompensa em dinheiro da Nota Fiscal Paulista criou o que os economistas chamam de “alinhamento de interesses”: o interesse individual é usado para ajudar a sociedade como um todo. Para participar do programa, os consumidores paulistas têm de fazer duas operações simples. A primeira é exigir nota fiscal identificada com seu CPF a cada compra. A segunda é se cadastrar no site da Fazenda para acompanhar o extrato dos créditos obtidos em cada compra. Tudo é feito pela internet, a tecnologia que uniu as três pontas – vendedor, consumidor e Estado – e deu transparência e rapidez ao processo. O consumidor pode pedir para receber a restituição dos créditos em sua conta bancária, pode transformar o valor em abatimento do IPVA, repassá-lo a terceiros ou doá-lo a uma instituição de caridade. Para participar dos sorteios, é preciso trocar as notas fiscais por cupons digitais – cada 100 reais acumulados em notas dão direito a um cupom. A engenhosidade do programa reside justamente nesse ponto. Ao fazer o acompanhamento digital das notas para restituir créditos ou para trocá-las por cupons, os consumidores verificam se os estabelecimentos estão, de fato, enviando as notas à Fazenda. “Acompanho nota por nota no site”, diz Eliana Verginio, moradora de Rio Claro, premiada recentemente num sorteio de 80 000 reais. Desde o início do programa, a Fazenda já recebeu 50 000 reclamações, a maioria de consumidores que não encontraram notas lançadas em suas contas no site da Nota Fiscal Paulista. Ao fazer o cruzamento de dados fiscais informados pelo varejo com as reclamações de consumidores, o governo paulista pôs em marcha um mecanismo antissonegação. “Hoje temos controle do movimento econômico de todo o setor varejista”, diz o secretário da Fazenda de São Paulo, Mauro Ricardo Costa. Atualmente, todos os setores do varejo são obrigados a remeter à Secretaria da Fazenda as notas fiscais emitidas mensalmente. Em 2008, as autuações a empresas que não recolheram ICMS somaram 15 bilhões de reais, ante 13 bilhões totalizados em 2007. Tais resultados despertaram o interesse de outros governos estaduais. Em novembro do ano passado, Alagoas lançou o Nota Fiscal Alagoana, nos mesmos moldes do programa paulista. Por enquanto, a Receita alagoana conseguiu 20 000 cadastros de consumidores em seu site. Até julho, todo o varejo do estado será obrigado a emitir a nota. Para os governantes, o maior apelo é o aumento da arrecadação sem grandes investimentos. Para colocar o Nota Fiscal Paulista em operação, o governo de São Paulo precisou de 30 milhões de reais. Até agora, gastou outros 40 milhões em propaganda. Só no setor de bares e restaurantes, a arrecadação com ICMS no varejo cresceu 19% em um ano de programa. No setor de vestuário e calçados, o aumento chegou a 31% no período. Atualmente, mais de 461 000 estabelecimentos – ou quase 100% dos varejistas do estado – estão obrigados a emitir a Nota Fiscal Paulista. Quem já atuava de acordo com a lei aproveita para oferecer espontaneamente a nota fiscal aos consumidores na esperança de que eles se acostumem com a ideia e passem a exigir o mesmo da concorrência. “Estamos no caminho para alcançar um ideal antigo, o da redução da carga tributária”, diz o secretário adjunto da Fazenda George Tormin. Se isso realmente vai acontecer, só o tempo dirá – a realidade no Brasil tem sido exatamente o oposto, com aumentos sucessivos na taxação. De todo modo, o programa paulista pode indicar uma alternativa no combate à sonegação – um problema de enorme proporção no país, que atravanca o crescimento econômico. Em 2008, cerca de 74 bilhões de reais deixaram de ser recolhidos pelo comércio aos cofres públicos do país, de acordo com um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. O ICMS é o segundo imposto mais sonegado, por 27% das empresas do país. Ainda segundo o estudo, 29% das empresas do setor de comércio sonegam algum tipo de tributo. Nesse cenário, as que trabalham na legalidade são duplamente penalizadas: pela alta carga tributária, que consome cerca de 36% de tudo o que é produzido no Brasil, e pela concorrência desleal com as que não pagam impostos. “A Nota Fiscal Paulista ajuda a aumentar a igualdade na concorrência, melhorando o ambiente de negócios”, diz o economista Guilherme Dietze, da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Esse é, por si só, um grande feito. http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0945/economia/25-milhoes-fiscais-476334.html

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima