Semana passada, tivemos o interessante artigo “Regimes Aduaneiros Especiais e o Projeto de Lei Complementar 68/24”, [1] no qual o colega Fernando Pieri Leonardo nos mostrou que a preocupação no sentido de que os regimes poderiam ser abolidos, juntamente com outros incentivos fiscais, está afastada. Ele nos evidenciou também que esses regimes, na forma constante do PLP nº 68/24, encontram sintonia com o Código Aduaneiro Europeu e com a Convenção de Quioto Revisada.
Nesse contexto, parece, num primeiro momento, que houve um grande avanço no tratamento dos regimes aduaneiros especiais, pois foram a um só tempo alçados à Constituição, que era silente neste tema, [2] e ainda devem constar em breve, de forma mais minuciosa, de lei complementar.
Natureza jurídica dos regimes aduaneiros especiais
Contudo, propõe-se o aprofundamento da discussão sobre os regimes na reforma tributária, especialmente se as novas regras poderiam içar mais clareza ao enquadramento dos regimes aduaneiros especiais no sistema jurídico brasileiro. A proposta é uma reflexão sobre a natureza jurídica dos regimes aduaneiros especiais em face dessas novas ou iminentes normativas.
Não se está diante de tema recente, a minha dissertação de mestrado foi exatamente sobre a natureza jurídica dos regimes aduaneiros especiais, defendida em 2001 e lançada como livro em 2002. [3] Neste texto, a conclusão foi de que os regimes aduaneiros especiais consistem em isenções tributárias condicionais, suspensivas ou resolutivas, dos tributos incidentes sobre o comércio exterior, nas quais os bens objeto de exportação ou importação são submetidos a controle aduaneiro. [4]
Depois de mais de duas décadas, esse problema que remonta ao milênio passado, ainda está sobre a mesa. Será que nosso horizonte agora será desanuviado?
Nunca é despiciendo lembrar que a definição da natureza jurídica dos regimes aduaneiros especiais é muito importante para entender o delineamento jurídico de cada um deles e também a respectiva estabilidade e aplicação. Ou seja, o resultado seria mais segurança jurídica para os beneficiários dos regimes e também para aqueles que investem no ou participam do comércio exterior brasileiro, especialmente no tocante ao descumprimento dos regimes e às respectivas penalidades.
Sendo uma isenção, os regimes aduaneiros especiais só podem ser criados ou alterados por meio de lei e em conformidade com o restrito regime jurídico das isenções tributárias. Sendo uma hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, as exigências são ainda maiores, inclusive previsão em lei complementar.
A legislação aduaneira continua a dispor sobre os regimes aduaneiros especiais majoritariamente como casos de “suspensão do pagamento” dos tributos ou das obrigações fiscais. O problema dessa definição é que, apesar de estarmos nos lindes do Direito Aduaneiro, estamos também no campo do Direito Tributário. Ou seja, é uma área de intersecção dos conjuntos Direito Aduaneiro e Direito Tributário e, consequentemente, há necessidade de alinhamento com os preceitos e limitações do Direito Tributário.
Pois bem, no Direito Tributário, não há qualquer previsão ou menção à “suspensão do pagamento de tributos” como um instituto diverso da suspensão da exigibilidade do crédito tributário, prevista no artigo 151 do CTN.
Ademais, a “suspensão do pagamento de tributo” não teria qualquer efeito se não houvesse também e, na mesma medida, a suspensão do direito do Fisco exigir tal tributo. Aliás, como assente na doutrina, a denominada “obrigação tributária principal” é parte de uma relação jurídica, na qual o sujeito ativo é credor e o sujeito passivo, devedor de determinado montante em dinheiro, montante este que corresponde ao tributo (ou à penalidade tributária).
Observe-se ainda que, cumpridas as condições do regime aduaneiro especial, essa “suspensão do pagamento” não permite uma posterior cobrança dos tributos, ou seja, ou ficaria a “suspensão” para sempre ou o regime se converteria em uma isenção. [5]
Se por um lado, há uma dificuldade lógico-jurídica em conceber uma “suspensão do pagamento” de tributo sem concluir que se trata de uma suspensão da exigibilidade do respectivo crédito tributário, pelo outro, é pacífico na doutrina e na jurisprudência que as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário têm de ser necessariamente veiculadas por lei complementar. Ainda que se defendesse que o Decreto-Lei nº 37/66, em alguma extensão, adquiriu hierarquia de lei complementar, [6] há regimes aduaneiros criados posteriormente por ato normativo de hierarquia inferior.
A Constituição e a reforma tributária
A Constituição de 1988, nem na sua redação original, nem pelas emendas anteriores à Reforma Tributária, fazia referência aos regimes aduaneiros especiais. Também não há lei complementar, no sentido formal, que trate desse assunto.
Então, voltamos à questão inicial. Será que, com a reforma tributária, com os regimes aduaneiros especiais sendo previstos em norma constitucional e regulados por lei complementar, nossas dúvidas sobre a natureza jurídica desse instituto finalmente serão esclarecidas?
Vejamos…
A Constituição Federal, artigo 156-A, § 5º, inciso VI, dispõe que:
Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
(…)
5º Lei complementar disporá sobre:
(…)
VI – as hipóteses de diferimento e desoneração do imposto aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais e às zonas de processamento de exportação; (grifou-se)
A previsão constitucional é tímida, sobre a qual é interessante trazer as palavras do meu colega Pieri:
Diferimento, nesse dispositivo, não deixou de trazer à tona a pouca familiaridade do constituinte derivado com o objeto de suas deliberações. É que não se utiliza essa terminologia na legislação aduaneira, ao menos, não para os regimes aduaneiros especiais. [7]
Como observou Pieri, na legislação aduaneira, os regimes são tidos como “suspensão dos tributos”. Na seara tributária, a discussão seria se são casos de suspensão da exigibilidade ou de isenções. Porém, na Constituição, preferiu-se usar termos diversos, amplos e descolados das querelas tributário-aduaneiras. O que não parece contribuir para elucidação da questão, pelo contrário.
Cabe observar que essa única norma constitucional sobre os regimes aduaneiros especiais não disciplina a tributação do comércio exterior e nem trata de direito aduaneiro, mas do IBS (e também do CBS), tributos internos, também cobrados na importação com base no princípio do tratamento nacional.
E o que vem na Lei Complementar
O PLP nº 68/2024 [8] abriga os regimes aduaneiros especiais nos seus artigos 88 a 96, de forma mais minuciosa, conforme explicado por Pieri. É possível entrever que no PLP, ao contrário da Constituição, houve participação de aduaneiristas.
O artigo 88 do PLP, ao prever o regime de trânsito aduaneiro, determina de início que “Fica suspenso o pagamento do IBS e da CBS”.
O artigo 89 começa com essa mesma expressão, “Fica suspenso o pagamento do IBS e da CBS”, ao trazer o novo gênero “Regimes de Depósito”. Tal gênero, como observou Pieri, inclui Lojas Francas, Depósito Aduaneiro Certificado, Entreposto Aduaneiro, Depósito Especial, Depósito Afiançado e o Depósito Franco.
O artigo 91, da mesma forma, começa com a expressão “Fica suspenso o pagamento do IBS e da CBS” e introduz mais um novo gênero: “Regimes de Permanência Temporária”. Valendo-nos mais uma vez das observações de Pieri, esta categoria abrange o Regime de Admissão Temporária com suspensão total e para utilização econômica, bem como a Exportação temporária.
O artigo 92 faz menção aos regimes em que a “suspensão do pagamento do IBS e da CBS será parcial” e proporcional ao tempo de permanência no Brasil, dispondo sobre a admissão temporária com pagamento proporcional. Importante observar que o PLP indica o percentual de pagamento (0.033% ao dia).
Esse percentual encontra-se definido em ato infralegal, [9] o que não se revela compatível com a legalidade inerente a uma desoneração tributária (seja isenção ou mesmo suspensão da exigibilidade do crédito tributário, ou ainda outra). O § 3º do artigo 92, incisos I e II, vai trazer para lei complementar a determinação de que não haverá cobrança proporcional no Repetro e na Zona Franca de Manaus.
O artigo 93 também se inicia com a expressão “Fica suspenso o pagamento do IBS e da CBS” para os bens submetidos aos Regimes de Aperfeiçoamento. Esta modalidade, também nova, engloba os regimes de Drawback Suspensão e ao Recof.
O artigo 96 do PLP trata do Repetro, determinando que “fica suspenso o pagamento do IBS e da CBS” nas operações que indica. Note-se que o Repetro não possui base legal específica, mas resulta de uma construção infralegal que mistura os regimes de Admissão Temporária para Utilização Econômica e o Drawback. É uma construção elaborada por meio de decreto, que permite a exportação sem saída física no regime de Drawback seguida da aplicação do Regime de Admissão Temporária para utilização econômica, mas sem pagamento parcial. [10]
Considerações finais
O primeiro ponto a ser observado é que, tanto o novo texto constitucional, quanto o PLP, não tratam dos regimes aduaneiros especiais de forma abrangente, discorrem apenas no que concerne aos novos tributos (IBS e CBS). Ou seja, nada dispõem acerca do imposto sobre a importação, imposto sobre a exportação e outros tributos incidentes no comércio exterior, bem como não versam sobre o controle aduaneiro pertinente a esses regimes. Ou seja, a normativa decorrente da reforma tributária não regula integralmente os regimes aduaneiros especiais e não têm o condão determinar de forma completa nem sua natureza nem seus lindes.
Talvez, em vez de colmatar as imperfeições da legislação sobre os regimes aduaneiros especiais, principalmente a falta de base legal e de coerência com o sistema jurídico tributário, a previsão constitucional — e, em breve, a lei complementar — permita-nos identificar com mais exatidão os problemas desse instituto.
Não parece, por sua vez, que o fato de a “suspensão do pagamento do IBS e da CBS” vir a ser prevista em lei complementar possa criar mais uma situação de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, além dos casos do artigo 151 do CTN. Ao contrário, se assim fosse, a nova lei complementar atingiria somente IBS e CBS. Como ficariam imposto de importação, imposto de exportação e os demais tributos incidentes no comércio exterior? E os tributos internos que incidem na importação e que serão retirados do sistema jurídico nos próximos anos?
Seguindo a mesma lógica de raciocínio, não é plausível concluir que a reforma tributária tenha estabelecido um terceiro gênero, diverso de isenção e de suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
Nessa perspectiva, a discussão basilar para entender e aplicar corretamente os regimes aduaneiros especiais ainda continua: Qual a sua natureza jurídica?
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[1] Disponível em < https://www.conjur.com.br/2024-ago-27/regimes-aduaneiros-especiais-e-o-projeto-de-lei-complementar-68-24/>. Acesso em: 02.set.2024.
[2] Até a Reforma Tributária, havia apenas, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, disposições sobre a Zona Franca de Manaus, que se enquadra como um regime aduaneiro aplicado em área especial, conforme Título II do Livro IV do Regulamento Aduaneiro, e não como um regime aduaneiro especial.
[3] “Regimes Aduaneiros Especiais”. 1. ed. Porto Alegre: IOB.
[4]: “Regimes Aduaneiros Especiais”. 1. ed. Porto Alegre: IOB, 2001, p. 343. Para aprofundamento nesse tema, além da obra citada, recomenda-se leitura do artigo “Regimes Aduaneiros Especiais”. In: Paulo de Barros Carvalho; Fabiana Del Padre Tomé; Lucas Galvão Britto. (Org.). PRODIREITO: Direito Tributário. 3ed.São Paulo: IBET, 2018, v. 4, p. 143-183.
[5] Por vezes, a própria Secretaria da Receita Federal do Brasil se utiliza da palavra isenção para explicar os regimes aduaneiros especiais, como nessa publicação sobre o Recof: disponível em < https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/regimes-e-controles-especiais/regimes-aduaneiros-especiais/recof-sped/compare-as-caracteristicas-principais-dos-regimes-aduaneiros-especiais>. Acesso em: 02.set.2024.
[6] Osíris Lopes Filho defendeu que os regimes aduaneiros especiais se enquadrariam como suspensão da exigibilidade do crédito tributário e que o Decreto-Lei no. 37/66 nesse tema teria sido recepcionado como lei complementar, no seu livro “Regimes Aduaneiros Especiais”, Ed. Revista dos Tribunais, 1984.
[7] “Regimes Aduaneiros Especiais e o Projeto de Lei Complementar 68/24”(Disponível em < https://www.conjur.com.br/2024-ago-27/regimes-aduaneiros-especiais-e-o-projeto-de-lei-complementar-68-24/>. Acesso em: 26.jul.2024).
[8] Está sendo utilizada a versão do PLP submetida ao Senado e disponibilizada no seguinte sítio: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/164914/>. Acesso em: 02.set.2024.
[9] Art. 373, § 2º, do Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro).
[10] “Por meio do art. 79 da Lei n.º 9.430, de 27 de dezembro de 1996, foi criada uma nova modalidade de Admissão Temporária: a admissão de bens para utilização econômica, com pagamento dos impostos incidentes sobre a importação proporcionalmente ao tempo de permanência dos produtos no Brasil (…)
No Decreto n.º 3.161/1999 (alterado pelos Decretos nº 3.663/2000 e nº 3.787/2001), o Poder Executivo, exercendo a competência que lhe fora conferida, autorizou a Admissão Temporária de bens estrangeiros para serem utilizados na pesquisa e lavra de petróleo sem o pagamento proporcional dos impostos incidentes sobre a importação e, associando este benefício fiscal a outros, criou o Repetro.” (Regimes Aduaneiros Especiais”. 1. ed. Porto Alegre: IOB, 2001, p. 307/308).