Reformar para retomar

Por Paula Cristina

O que antes era recomendável passou a ser obrigatório. Não estamos falando de protocolos de segurança para a saída da quarentena imposta com a chegada da Covid-19 ao Brasil e sim da discussão sobre mudanças estruturais na gestão pública e nas obrigações tributárias privadas. Os dois temas estavam na pauta do Congresso Nacional antes da pandemia e deveriam entrar em votação para garantir um impulso na retomada do crescimento econômico, após mais um ano em que o Produto Interno Bruto (PIB) não passou da casa de 1%. Com a iminência de um colapso econômico, avançar com essa agenda se tornou essencial. Tanto porque dela depende a imagem da economia brasileira para investidores de todo o planeta quanto pela certeza de que a própria atividade vai mudar — e a capacidade de adaptação ao futuro ditará o papel do Brasil em um novo mundo.

Há poucos meses, a reforma tributária surgia como um modo de diminuir as distorções do sistema fiscal brasileiro. Hoje, ela é vital para que os empresários fiquem menos estrangulados financeiramente após um período longo de baixas receitas. A reforma administrativa, que figurava no discurso liberal da equipe econômica como uma ação para modernizar o Estado brasileiro, virou a única saída para que a dívida pública não ultrapasse 100% do (PIB) em um horizonte próximo. As duas reformas — administrativa e tributária — precisam ser aprovadas para que o governo federal tenha condições de atrair investimentos estrangeiros para vender a preços justos as estatais e ativos públicos que não sejam estratégicos e podem ser geridos com maior eficiência pela iniciativa privada. Atrair interessados em fazer essas aquisições será bem mais difícil agora, com a retração da economia global, e praticamente impossível se não houver uma sinalização clara de que o País ofereça segurança jurídica, responsabilidade fiscal e um ambiente tributário simplificado.

Em entrevista à DINHEIRO, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) ressaltou a necessidade de avançar com a reforma administrativa e cobrou do presidente da República e da equipe econômica comandada pelo ministro Paulo Guedes o envio de um texto para apreciação do Parlamento. “No pós-pandemia teremos uma nova realidade e uma necessidade de reorganização do Estado brasileiro também em outro patamar”, afirmou. “Quem pensava uma reforma administrativa antes dessa pandemia com uma relação dívida/PIB de 70%, agora vai ter que pensar uma relação dívida/PIB com 100%”.

Para o deputado, além de rever o tamanho do Estado, a reforma administrativa terá como objetivo ampliar as economias previstas com a nova Previdência. Ele entende que a mudança da seguridade social foi insuficiente por só atingir servidores futuros e, com a dívida bruta pública em trajetória de crescimento, algumas medidas para diminuir os gastos precisam ter efeito imediato. Maia não descartou novas análises sobre mudanças nos processos de aposentadoria, visto que o contexto em que foi aprovada a nova Previdência era completamente outro se comparado ao atual.

“PARASITAS” O ministro Paulo Guedes, que sempre combateu o elevado número de cargos na estrutura pública, chegou a chamar os servidores de “parasitas”, e no dia 17 de maio voltou a falar sobre a necessidade da reforma, quando acusou os trabalhadores do Estado de querer “assaltar” o Brasil com pedidos de reajuste. As falas de Guedes, mais do que alfinetar uma categoria inteira, têm como objetivo instigar o Congresso a retomar a votação das Propostas de Emenda à Constituição 186 e 188, conhecidas como PEC Emergencial. Já no Parlamento, esse conjunto de emendas cria mecanismos para exclusão de cargos obsoletos, acaba com a estabilidade do servidor, trava concursos públicos em estados de calamidade e estabelece metas meritocráticas para pagamento de bônus. O argumento de Guedes é que a folha de pagamento de funcionários ativos e inativos da União forma a maior despesa do governo (sem contar os juros da dívida pública) e, com a pandemia, a arrecadação vai cair, tornando inviável manter esse contingente de trabalhadores e aposentados. “A conta não fecha”, afirmou o ministro. Contumaz defensor do Estado mínimo, Guedes se apoia também nas orientações do Banco Mundial para o Brasil. Desde 2016, a instituição financeira defende que o País comece a equiparar os salários dos funcionários públicos com os da iniciativa privada.

Sobre o andamento da reforma tributária, Maia também defendeu agilidade, com aprovação rápida após a pandemia, para acelerar a recuperação brasileira e dar fôlego aos empresários e à sociedade civil em um momento no qual precisa haver maior circulação de dinheiro para reativar a atividade econômica. “Se a reforma não andar, o pós-pandemia será um caos para o Brasil”, disse e deputado. A reforma da estrutura fiscal brasileira, desenhada na PEC 45, é a mais forte entre as quatro propostas no Congresso, e deve voltar à discussão no Parlamento no começo de julho. Mesmo com a previsão de celeridade, Maia adianta que a análise será mais complexa e profunda em função dos efeitos da Covid-19. “Certamente a discussão sobre o sistema tributário como um todo será um pouco mais complexa e mais relevante”.

 

O projeto de emenda em questão trata principalmente da união de impostos federais, estaduais e municipais (PIS, Cofins, IPI, ISS e ICMS) sobre o consumo de bens e serviços. “Temos um debate sobre a tributação dos impostos de bens e serviços na Câmara. A gente não sabe se depois da pandemia esse é o debate, mas não tenho dúvida que discutir um novo sistema tributário será fundamental para que o Brasil consiga sair com alguma força dessa crise.”

Com as empresas estranguladas e o governo podendo abrir mão de parte da arrecadação com programas de desoneração da folha de pagamento (leia mais no quadro) a alta conta da retomada pode ficar, até a aprovação da reforma tributária, nas mãos de pessoas físicas. Ainda que a volta da CPMF seja um assunto refutado publicamente pelo governo, nos bastidores do palácio do Planalto se estuda algum tipo imposto temporário, que pode ser em transações digitais, para elevar a arrecadação de forma ágil. A medida, no entanto, nem sequer está em discussão no Congresso. Um parlamentar da comissão especial de assuntos econômicos afirmou ter sido sondado pela equipe de Guedes sobre a aderência desse projeto – que já havia sido descartado por Maia antes da pandemia. “É um assunto espinhoso, principalmente em 2021, com os senadores e deputados pensando na eleição de 2022”, disse, em condição de anonimato. Até por essa razão, acelerar os trâmites da reforma tributária se faz ainda mais necessário e urgente.

Danilo Alves, doutor em economia tributária e conselheiro do ex-ministro e atual secretário da Fazenda do Governo do Estado de São Paulo Henrique Meirelles, afirma que a solução mais adequada é rever as obrigações fiscais de modo transparente, por meio de mudança na Constituição. “Impostos temporários são mal vistos pela população e podem se tornar uma dor de cabeça em pouco tempo. É preciso redesenhar obrigações, até para atrair capital estrangeiro dando estabilidade aos investidores e empresários”, afirma.

Outro plano de Paulo Guedes que foi devastado pela Covid-19 era diluir a dívida pública por meio da venda de ativos do governo que não fossem considerados primordiais pela equipe econômica. Sem condições de tocar tais medidas em meio ao coronavírus, o secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, Salim Mattar, confirmou o adiamento do programa, prometendo retomá-lo com força total em 2021. De acordo com o secretário, a recessão econômica global desvalorizou o preço dos ativos, inviabilizando qualquer venda neste momento. Ele admitiu que a meta de se desfazer, neste ano, de 300 ativos federais avaliados em R$ 150 bilhões não será cumprida. Essa meta tinha sido estabelecida em janeiro.

“Nossa meta ambiciosa era de R$ 150 bilhões, e vocês viram que, depois de fevereiro, não houve venda, nem há clima”, disse Mattar à DINHEIRO. Diante de um cenário nebuloso em relação à economia, ele disse que não tem uma meta nova.“O ambiente é de incerteza. Não sabemos se poderemos fazer a venda de ativos no segundo semestre, no quarto trimestre. Esperávamos fazer a capitalização da Eletrobras até outubro. Esse plano foi postergado. Não há ambiente no mercado para a venda de participações e ativos. Essa crise nos surpreendeu.”

Com relação à privatização de empresas como a Eletrobras, o secretário confirmou a intenção de enviar ao Congresso um projeto de lei para a reinclusão da estatal no Programa Nacional de Desestatização (PND). Haveria ainda outro texto envolvendo Correios, Casa da Moeda e Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Com relação à desestatização da Hemobrás, estatal de produção de hemoderivados, Mattar ressalta ser mais complicado, por depender de uma mudança na Constituição.

“ECONOMIA COMBALIDA” No radar também estaria a venda de parcela da Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias (ABGF) e a venda da Empresa Gestora de Ativos (Emgea). Essas duas, segundo ele, poderia acontecer no último trimestre, caso a Covid-19 seja controlada e os preços reajam. “Passada a pandemia do coronavírus, o Congresso vai ter de tomar sérias medidas. A economia brasileira está combalida”, disse Mattar. Sobre os negócios já feitos este ano, Mattar destacou ter obtido R$ 29,5 bilhões com venda de ativos. Desse total, R$ 22,5 bilhões referem-se à venda de participações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na Petrobras e na Light, R$ 6 bilhões em desinvestimentos da Petrobras e R$ 1,1 bilhão de venda de ações excedentes da União no Banco do Brasil. Até dezembro, o governo planejava vender mais R$ 70 bilhões em participações da União e do BNDES. O secretário disse que elaborará uma nova meta “ambiciosa” de desestatizações para 2021, mas não deu mais detalhes. Sem saídas milagrosas, reformar o estado brasileiro é tão difícil quanto receber um pedreiro em casa. Pode parecer exaustivo, dá vontade de desistir no meio do caminho e possivelmente demora mais que o projetado inicialmente, mas vale a pena no final das contas.

Desoneração no radar

Enquanto as mudanças estruturantes não saem, uma medida de aprovação mais simples voltou ao radar dos deputados e senadores: a desoneração da folha de pagamento. A possibilidade de que a isenção passe dos atuais três meses para até dois anos seria um alívio para o empresariado, que assim compensaria parte das perdas da baixa atividade econômica. Para o governo, ela pode gerar um grande problema nas contas públicas, como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff, que entre 2011 e 2015 renunciou a quase R$ 460 bilhões com desonerações e teve como resultado o maior déficit do governo na história.

A discussão sobre a desoneração retornou ao Congresso com a Medida Provisória 936. O foco agora está em quais setores devem receber a benesse do governo e por quanto tempo.

Para o Procurador do Distrito Federal Eduardo Muniz Machado Cavalcanti, a saída não é simplesmente a desoneração por si só, mas o entendimento de que o Brasil enfrenta uma “aberração jurídico-econômica por décadas”. Segundo o advogado, o excesso de tributação sobre a folha de pagamento (que pode ultrapassar 50% quando somado contribuição de empregador e empregado) inviabiliza boa parte dos trabalhos formais no País. “A desoneração é importante para atravessar a tempestade, mas não se sustenta no médio e longo prazo”.

A Confederação Nacional de Serviços (CNS) e Associação Brasileira da Advocacia Tributária (ABAT) elaboraram algumas propostas para que a desoneração não custe tão caro aos cofres públicos. O texto, que é de conhecimento de parte dos parlamentares na Câmara, inclusive do deputado Orlando SIlva (PCdoB-SP), relator da MP, envolve substituir o subsídio da Previdência que hoje se dá na produção pela cobrança do imposto no consumo. “A forma direta e mais eficaz de promover essa mudança é zerar a contribuição patronal e reduzir a contribuição dos trabalhadores”, diz Luigi Nese, presidente fundador da CNS. Na contrapartida, afirma, para garantir os recursos para o financiamento das aposentadorias e pensões, “seria empregado um tributo sobre depósitos à vista nos bancos, ou Contribuição Previdenciária sobre Movimentação Financeira [CPMF]”.

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