O fantasma da dupla contabilidade

Por Fernando Torres

O governo reacendeu há algumas semanas o fantasma da dupla contabilidade, com a proposta de separação total da apuração do lucro societário, aquele que vale para apuração dos dividendos aos acionistas, do lucro fiscal, que serve como base para tributação da renda. Se a ideia não acaba formalmente com a adoção do padrão contábil internacional no Brasil, pode representar um risco para o uso do IFRS por empresas fechadas e menores.

O Brasil iniciou o processo de adoção do IFRS em 2008, com objetivo de tornar os balanços das empresas locais comparáveis ao das concorrentes de outros países e de facilitar o acesso das companhias brasileiras ao mercado de capitais internacional. Além da comparabilidade, diversos estudos acadêmicos apontaram a melhora da qualidade e da relevância da informação financeira produzida dentro desse padrão.

Como havia uma preocupação de que a mudança contábil provocasse mudança (leia-se aumento) da carga de tributos, adotou-se inicialmente o chamado Regime Tributário de Transição (RTT), por meio do qual, após a apuração do lucro societário conforme as regras internacionais, as companhias passaram a fazer uma série de ajustes para se chegar ao lucro tributável, conforme as regras fiscais que seguiam vigentes.

Após a edição da Lei 12.973, o regime que era de transição se tornou perene. E a cada nova mudança na contabilidade internacional está prevista a criação de um novo ajuste a ser feito para fins de apuração da base tributável.

Pelo relatos ouvidos nos últimos anos, é possível dizer que dá bastante trabalho, para as empresas, realizar esses controles, e divulgar os ajustes anualmente para a Receita Federal, via Sped.

Mas o fato é que os investimentos necessários para essa prestação de contas já foram feitos.

Agora, talvez porque esteja com dificuldade de acompanhar os ajustes que são realizados, o Fisco colocou na mesa novamente a proposta de que as empresas tenham contabilidade paralela em que ele será o único responsável por ditar o que é receita (tributável) e despesa (dedutível) de cada período. Em vez de se partir do lucro societário e realizar os ajustes, monta-se uma demonstração de resultados totalmente nova, que só valerá para a Receita Federal, e com regras definidas por ela.

Em termos operacionais, cabe às empresas dizer o que lhes dá mais trabalho. Se é manter o modelo de ajustes já desenvolvido, ou criar um novo sistema contábil para conviver com o atual - pelos relatos colhidos até agora, parece haver uma preferência, no empresariado, pelo modelo vigente.

Mas há outras questões além dessa citada acima. Se a proposta da Receita Federal não acaba oficialmente com o IFRS entre as pouco mais de 500 companhias abertas registradas na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), já que a exigência continuaria a existir e os balanços serão necessariamente auditados e conhecidos pelo público, há um risco não desprezível de que as demais empresas do país acabem deixando de produzir a contabilidade societária no padrão internacional, reconhecidamente de melhor qualidade para a gestão empresarial. Para o ambiente de negócios do país, portanto, seria ruim.

Outro risco citado por empresários é que, uma vez que haja o divórcio completo entre a contabilidade societária e a fiscal, a Receita Federal decida impor livremente seus critérios sobre o que reconhecerá como receita ou despesa, sem que as empresas possam se escorar em regras contábeis para se defender de medidas que visem apenas o aumento da arrecadação.

Embora os brasileiros tenham dificuldade de lidar com a subjetividade trazida pela contabilidade mais próxima do valor justo, parece cortina de fumaça imputar o volume de contencioso fiscal no país à adoção do IFRS, uma vez que ele já era bastante grande antes de 2008. Se o secretário da Receita considera que as regras internacionais criam fenômenos "esdrúxulos", é bom lembrar que investidores de mais de cem jurisdições no mundo investem centenas de bilhões de dólares em empresas que calculam seus lucros e dividendos com base nessas normas.

https://www.valor.com.br/brasil/6412173/o-fantasma-da-dupla-contabilidade

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