Por Diego Fischer

Os esforços do Brasil para tornar-se membro efetivo da Organização para a Cooperação e desenvolvimento Econômico (OCDE) se intensificaram em 2017, quando o então presidente expressou interesse em integrar o grupo. Desde então, e apesar de alguns revezes, o governo vem obtendo apoio de parte importante dos países-membros[1].

Além de articulação política, o ingresso do Brasil na OCDE depende de seu alinhamento às diretrizes desta entidade e um dos principais entraves é a divergência das regras de preços de transferência brasileiras em relação às normas internacionalmente aceitas.

Em 2018, a OCDE e o Brasil trabalharam em projeto conjunto que deu origem ao relatório “Preços de Transferência no Brasil: Rumo à Convergência com o Padrão da OCDE”, publicado em 18 de dezembro de 2019, em Brasília (Relatório). Nele são discutidas as opções de alinhamento do sistema brasileiro com o padrão internacional de preços de transferência, representado pelas diretrizes da OCDE.

O Relatório tem prefácio do Secretário Especial da Receita Federal do Brasil, José Barroso Tostes Neto, que admite que as normas do Brasil, praticamente inalteradas desde 1996, embora simples no que se referem ao cumprimento das regras e da administração tributária, já não são mais eficazes para eliminar a dupla tributação — ou dupla não tributação. Há menção à expectativa de que o Brasil se alinhe às diretrizes da OCDE e siga o princípio arm's length.

Ainda consta do Relatório que as divergências identificadas entre as regras de preços de transferência brasileiras com as normas internacionalmente aceitas resultam em muitos casos de dupla tributação e geram distorções e incertezas, sem falar nas fragilidades relativas à ausência de regras para ativos intangíveis, serviços intragrupos e reestruturação de negócios. Ademais, a simplicidade e previsibilidade do sistema brasileiro, que se utiliza de margem fixas, liberdade de seleção de métodos e safe harbors resulta em segurança jurídica somente sob uma perspectiva doméstica. No âmbito internacional as normas apresentam insegurança, na medida em que não evitam a dupla tributação por conta do desalinhamento com o padrão OCDE.

Ausência de adesão ao princípio arm's lenth
No relatório, afirma-se que o fato de o Brasil adotar margens fixas vai de encontro ao princípio arm's lenght, pois estas não refletem a realidade econômica de todas operações. Essa premissa, contudo, está equivocada. O tema já foi explorado em estudos acadêmicos brasileiros que sustentam, de forma sólida a inverdade dessa afirmação.[2] Não é verdadeiro que as diretrizes da OCDE são a única fonte de aplicação do princípio arm’s length, muito menos que esta é a única opção viável para repartir lucros entre jurisdições. Nesse sentido é o Formulary Apportionment, por vezes sugerido como alternativa.[3]

Métodos
A OCDE apresenta 5 métodos de definição de preços de transferência, sendo que dois deles não são adotados no Brasil. São eles o Transactional Net Margin Method (TNMM) e o Profit Split.

O TNMM adota o lucro de uma empresa do setor em determinada transação como parâmetro para os ajustes de preços de transferência. É o método mais utilizado, em razão da possibilidade de obter-se maior amostragem de dados. É utilizado especialmente nas operações em que os demais métodos são insuficientes ou alcançam resultados não satisfatórios.

Profit Split prevê a alocação do lucro de acordo com inúmeras variáveis, principalmente relativas aos riscos tomados e às funções exercidas pelas partes envolvidas em uma transação, atribuindo-se lucros proporcionalmente à atuação de cada agente envolvido. Esse método é utilizado em casos em que as operações são muito específicas, ou mesmo quando não há operação comercial semelhante entre partes não relacionadas, o que dificulta a obtenção de parâmetros[4]. É um método utilizado em transações que envolvem ativos intangíveis e, por ser de grande complexidade e subjetividade elevada, seu uso pode gerar, além de custos de transação, insegurança jurídica e disputas.

Além de a legislação brasileira não contemplar esses dois métodos, no Brasil é possível escolher o método mais benéfico ao contribuinte – com exceção das transações com commodities. Todavia, pelas regras da OCDE, o critério deve ser o método mais adequado para a transação (Most Appropriate Method) e não necessariamente o mais benéfico ao contribuinte.

A escolha do método mais adequado aumenta a complexidade da análise dos preços de transferência, pois obriga o contribuinte a testar diversos métodos para encontrar o mais adequado. Por vezes é necessária a utilização de métodos secundários para corroborar o método escolhido[5]. Há, ainda, certa obscuridade em relação ao que seria o método mais adequado , de modo que a divergência entre a administração fazendária e os contribuintes pode levar ao caminho do litígio.[6]

A liberdade de escolha do método, como possível no Brasil, resulta em maior simplicidade e segurança jurídica. O relatório OCDE, entretanto, refuta esse argumento e afirma que a liberalidade distorce resultados, uma vez que não alcançaria os objetivos do princípio arm’s length.

Análise de comparabilidade
A análise de comparabilidade é relevante para a escolha dos métodos e para definição das transações que serão utilizadas como parâmetro. Pelas regras da OCDE, devem ser observadas questões como termos contratuais, análise de funções, características dos produtos e serviços, circunstâncias econômicas e estratégias negociais para delimitar as operações que podem servir como parâmetro.[7]

O sistema brasileiro também utiliza de análise de comparabilidade para delimitar a amostragem de dados e definir o preço parâmetro, porém é menos aprofundada em razão da própria essência do sistema brasileiro, que dá liberdade a seleção do método.

Se o Brasil adotar integralmente as diretrizes da OCDE, será necessário que as empresas e o governo brasileiro invistam na formação de profissionais qualificados, aptos a realizar essa análise de comparabilidade.

Ativos intangíveis, serviços intragrupo e reestruturação de empresas
O Relatório aponta que uma das falhas do sistema brasileiro diz respeito aos preços de transferência aplicados a ativos intangíveis, serviços intragrupo e reestruturação de empresas. Afirma-se que a aplicação de margens fixas e a ausência de previsão de métodos eficientes para operações complexas provocam distorção nos resultados e não se alcança o princípio arm’s length pois permite que contribuintes se utilizem de margens excessivamente altas ou baixas e distorçam os resultados das análises de preços de transferência.

De fato, os métodos brasileiros, no que se refere ao controle dos preços de transferência de intangíveis, são deficitários e a peculiaridade de determinadas operações torna praticamente impossível encontrar parâmetros adequados. Nesse ponto, a adoção de métodos como o TNMM e o Profit Split pelo Brasil é bem-vinda.

É preciso salientar, entretanto, que mesmo para as administrações fazendárias mais experientes e que adotam as diretrizes da OCDE, a atribuição do lucro nestas operações é um grande desafio e tende a gerar relevantes disputas.

Mecanismos de resolução de disputas
Em comparação ao modelo brasileiro, pelo fato de adotar métodos mais subjetivos, o modelo OCDE gera maior número de disputas, seja em âmbito doméstico, seja em âmbito internacional.

Isso porque, no modelo OCDE, os ajustes dos preços de transferência devem refletir ambos os lados da operação, ou seja, permitir de forma equivalente a dedutibilidade dos custos do lado do importador e o reconhecimento de receita do lado do exportador. Somente por meio dessa equivalência que se evita a dupla tributação ou a dupla não tributação, mas nem sempre há concordância com os resultados.

Para solucionar estas disputas a OCDE traz algumas possibilidades: (i) Mutual Agreement Procedures (“MAP”), Advance Pricing Agreement (APA) e Arbitragem.

O MAP serve como instrumento de diálogo entre as autoridades competentes dos Estados envolvidos na transação, visando ao consenso quanto à interpretação de regras para evitar a dupla tributação, o que inclui regras de preços de transferência. O Brasil adota timidamente o MAP desde a publicação da Instrução Normativa RFB nº 1846, de 28 de novembro de 2018. São poucas as disputas decorrentes desse instrumento[8].

O APA permite aos contribuintes trazerem às autoridades administrativas os métodos e critérios que serão aplicados pela empresa em determinado período, antecipando possíveis disputas de preços de transferência. A ideia é que encontrem consenso na aplicação dos métodos e se promova transparência das operações. Esse procedimento não existe no Brasil.

A Arbitragem também é uma das formas de resolução de disputas, bastante útil nos casos em que o MAP não as soluciona. No Brasil, embora se discuta muito sobre a sua implementação, a arbitragem no âmbito tributário não é aplicável e mesmo entre os países membros da OCDE a prática não é adotada por todas as jurisdições.

Opções de alinhamento com o Padrão OCDE
Ao final do Relatório são verificadas as opções do Brasil, quais sejam, (i) alinhamento total e imediato ao modelo OCDE ou (ii) alinhamento total e gradual.

Note-se, de início, a impossibilidade do alinhamento parcial ou de um sistema duplo (dual). Como justificativa, o Relatório afirma que o alinhamento parcial acarreta o risco de lacunas e distorções no sistema, o que manteria a dupla tributação, além facilitar o uso de planejamento tributário abusivo, ante a utilização de regime mais benéfico para redução das bases tributáveis, ou mesmo a distorção ao regime de livre concorrência entre empresas.

O alinhamento imediato, por sua vez, é impossível por questões práticas. O próprio Relatório sugere alinhamento total e gradual. Sugere, em paralelo, a criação de safe harbors para operações menores e menos complexas, que preservem a simplicidade do sistema, mas que se alinhem ao princípio do arm's length.

A recomendação contida no Relatório, definitivamente, implica no descarte do sistema brasileiro para adoção do modelo OCDE. Esse é um caminho que certamente irá gerar disputas tributárias de grande complexidade no âmbito doméstico e internacional.

O anseio por participar da OCDE pode fazer com que o modelo brasileiro seja completamente abandonado, a despeito dos méritos desse modelo, precipitadamente descartados pelo Relatório.

É de se ponderar se a adoção completa, abandonando as margens fixas e liberdade de escolha será algo positivo ao país. O modelo brasileiro ainda que demande urgente atualização e revisão, talvez continue sendo o mais adequado à nossa realidade tributária [9].

Apesar disso, transparece que o Brasil não terá escolha. Se quiser participar da OCDE, o alinhamento completo às diretrizes parece ser não negociável. Se espera, portanto, que os benefícios econômicos que resultem dessa filiação justifiquem o comprometimento do país.


[1] Como noticiado em :https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,trump-desiste-de-apoio-a-brasil-na-ocde-mas-da-aval-a-inclusao-da-argentina,70003044940 e https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,eua-querem-brasil-como-prioridade-em-fila-para-entrar-na-ocde,70003158923

[2] O manifesto pode ser lido em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-25/opiniao-seguranca-juridica-isonomia-relacao-brasil-ocde

[3] Formulary Apportionment busca a alocação dos lucros conforme a presença de uma empresa (vendas, bens e funcionários) em determinada jurisdição.

[4]  OECD (2018), Revised Guidance on the Application of the Transactional Profit Split Method: Inclusive Framework on BEPS: Action 10, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project, OECD Paris. 

[5]  Ahmadov, Jamil. The “Most Appropriate Method” as the New OECD Transfer Pricing Standard: Has the Hierarchy of Methods Been Completely Eliminated?. in International Transfer Pricing Journal, ed. junho/2011.

[6] Exemplo disso foi o emblemático caso, julgado nas cortes americanas, CompaqComputerCorp v. Comissioner, no qual discutiu-se o uso do Comparable uncontrolled price method ou Cost-plus method

[7] OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2017, p. 147 disponível em https://read.oecd-ilibrary.org/taxation/oecd-transfer-pricing-guidelines-for-multinational-enterprises-and-tax-administrations-2017_tpg-2017-en#page1

[8] Verificam-se 18 disputas até 21.12.2018. Fonte: https://www.oecd.org/tax/dispute/mutual-agreement-procedure-statistics-2018-per-jurisdiction-transfer-pricing.htm < acesso em 10.01.2020>

[9] Como se pode ler em https://g1.globo.com/economia/noticia/empresas-gastam-1958-horas-e-r-60-bilhoes-por-ano-para-vencer-burocracia-tributaria-apontam-pesquisas.ghtml

 

https://www.conjur.com.br/2020-jan-25/diego-fischer-harmonizacao-brasil-padrao-ocde

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