Por Roberto Duque Estrada

“Morality is simply the attitude we adopt towards people we personally dislike”. (Moralidade é simplesmente a atitude que adotamos em relação às pessoas de quem pessoalmente não gostamos)
— Oscar Wilde, An Ideal Husband.

Entre os dias 27 de agosto e 1º de setembro o Rio de Janeiro foi a capital mundial do direito tributário internacional e nós, membros do comitê organizador[1], da diretoria da Associação Brasileira de Direito Financeiro (“ABDF”), tivemos a honra e o mérito de entregar para a comunidade de tributaristas do Brasil e do exterior um dos melhores congressos da International Fiscal Association (“IFA”) de todos os tempos. Foram quase 2.000 pessoas provenientes de 83 países, reunidas em nossa cidade, discutindo o que há de mais relevante em matéria de tributação internacional, trocando experiências e conhecimentos, confraternizando e desfrutando daquilo que o Rio tem de melhor a oferecer: sua hospitalidade, musicalidade e belezas naturais inigualáveis.

A alegria da sensação de missão cumprida nos enche de orgulho e satisfação. O time da organização, sob a liderança do Presidente Gustavo Brigagão, nosso colega de coluna, foi uma equipe em que preponderou a harmonia. Cada um de seus membros deu o melhor de si, atuando naquelas áreas em que se sentiam mais capacitados, sempre com a primazia do consenso. Em momento algum houve imposição ou sobreposição. As ideias fluíram naturalmente, as discussões foram amplas e democráticas. Em vários momentos enfrentamos grandes dificuldades externas, mas jamais tivemos dificuldades internas. Por isso credito o sucesso do evento à absoluta confiança que tínhamos uns nos outros e na consequente força de nosso conjunto.

O Brasil teve papel de grande destaque no Congresso. A participação de quase 600 tributaristas, entre advogados, procuradores das fazendas federal, estaduais e municipais, auditores fiscais, professores, acadêmicos e contadores, fez da delegação brasileira uma das maiores delegações nacionais, senão a maior, de todos os tempos na IFA. O apoio maciço de escritórios de advocacia, fez da IFA Rio 2017 a conferência com maior número de patrocinadores. Sem falar que nossos representantes brilharam nos painéis em que participaram em diferentes funções, seja como presidentes, palestrantes ou secretários.

Marienne Coutinho abriu com chave-de-ouro a participação brasileira, falando de forma magistral na sessão plenária de segunda-feira, a respeito do atual estágio de implementação das medidas propostas pela OCDE no contexto do plano BEPS lançado pelo G 20 em 2012. Em sua apresentação foi analisada uma estrutura internacional hipotética, de um grupo multinacional, que envolvia (i) a atuação de uma empresa estrangeira (EUA) de comércio pela internet a clientes brasileiros através de uma plataforma global de e-commerce; (ii) que recebia remunerações pela prestação de serviços de gestão mercadológica pagas por uma empresa brasileira; (iii) empresa brasileira essa controlada diretamente por uma holding domiciliada na Holanda, recebedora, por seu turno, de remunerações a título de juros sobre capital próprio.

A principal das questões abordadas por Marienne Coutinho na análise do caso diz respeito à dificuldade de lidar no Brasil com a temática do estabelecimento permanente, conceito-chave na tributação internacional, presente em todos os tratados contra a dupla tributação, mas de quase inexistente aplicação prática no Brasil, salvo no caso das filiais de pessoas jurídicas estrangeiras, em razão de nossa legislação tributária que trata do assunto ter dedicado maior relevância aos casos de intermediação comercial, por agentes e comissários mercantis, figuras frequentes no período em que referida legislação foi produzida. A pobreza legislativa em matéria de estabelecimentos permanentes, especialmente no domínio das prestações de serviços, pode explicar-se pela preferência por uma elevada carga tributária sobre remessas ao exterior, hoje sujeitas a uma torrente de tributos: imposto de renda na fonte, PIS/COFINS importação, CIDE royalties e ISS, que podem chegar a gravar mais de 50% da remuneração remetida ao exterior, onerando sobremaneira o tomador de serviços nacional, quem acaba por suportar esse custo fiscal.

A segunda sessão plenária, na manhã de terça-feira, contou com a presença de nada menos do que três tributaristas brasileiros de renome: o professor titular de direito tributário da USP Luis Eduardo Schoueri foi quem presidiu a sessão que discutiu o futuro da legislação de preços de transferência, da qual participaram o professor de direito tributário da UERJ Sergio André Rocha, que foi o relator do tema para o Congresso, e o professor assistente da USP Mateus Calicchio Barbosa.

Nesse painel, uma das questões mais polêmicas discutidas foi a da adequação do sistema de preços de transferência brasileiro, que se utiliza de margens fixas, legalmente predeterminadas, com os parâmetros de preços de mercado (arm´s lenght), obtidos por metodologias abertas, que predominam nos demais países. A pressão internacional tem sido intensa sobre o Brasil, uma vez que a política de margens fixas é vista como provocadora de distorções que podem conduzir à dupla tributação internacional. Noutro giro, a adoção de metodologias abertas tem se revelado um foco constante de insegurança jurídica, especialmente em atividades econômicas mais complexas ou muito específicas, fenômeno que se acentuou na era da economia digital.

Como solução propõe-se a ampliação dos chamados safe harbors, literalmente os “portos seguros”, que consistem em salvaguardar certas operações da aplicação da legislação quando verificadas determinadas condições, como sucede, por exemplo, no Brasil, no caso das receitas de exportação para pessoas vinculadas, que só ficam sujeitas a arbitramento quando o preço médio de venda para o exterior for inferior a noventa por cento do preço médio praticado no mercado interno para a venda dos mesmos bens, serviços ou direitos (art. 19 da Lei n.º 9.430/96).

Ainda que polêmica, a experiência brasileira no domínio dos preços de transferência pode ser vista como um exemplo de simplificação em prol da segurança jurídica. A fixidez das margens de presunção presta-se a garantir algum grau de segurança jurídica para os particulares e pode funcionar, para contribuintes de menor porte e complexidade, como um “lucro presumido” dos preços de transferência. Mas o engessamento das margens, com uma natureza de presunção absoluta (iuris et de iure) e não relativa (iuris tantum) não pode prevalecer para todas as situações, pois colide com o regime do art. 9º dos tratados contra a dupla tributação e tem conduzido ao isolamento do Brasil na cena mundial. Com efeito, a entrada do Brasil na OCDE, grupo de elite econômica, como afirmado por Pascal Saint-Amans, diretor do centro de política fiscal e administração da OCDE em coletiva de imprensa realizada durante o evento[2], exigirá uma adaptação legislativa nesse domínio. Quem sabe o caminho não poderá ser aquele apontado no painel pelos professores brasileiros de tornar ilidíveis as presunções de margens de lucro (rebuttable profit margins)?

Além das sessões plenárias, onde se debateram os dois temas principais do Congresso, realizaram-se dez seminários (A a J), nos quais também tiveram papel de destaque participantes brasileiros, a saber: Priscila Vergueiro, que secretariou o painel do Seminário A, a respeito da fragmentação de contratos e tributação; Lucas de Lima Carvalho, que secretariou o painel do Seminário B, a respeito da troca automática de informações; Luciana Rosanova Galhardo, que palestrou brilhantemente em painel versando sobre o tema de sua especialidade – contratos de cost-sharing e cost contribution no Seminário C; Antonio Luis da Silva Jr., que secretariou o atualíssimo painel do Seminário F sobre a crise econômica e a proteção dos direitos dos contribuintes: moralidade fiscal; no painel do Seminário H, a respeito os avanços mais recentes da tributação internacional, mais uma vez três brasileiros deram importante contribuição: Tatiana Falcão nos atualizou sobre as perspectivas da ONU, Marcos Valadão nos reportou a evolução da legislação brasileira em matéria de tributação de lucros de controladas no exterior e Jonathan Barros Vita teve a dupla função de palestrar e secretariar o painel; Raquel Novais presidiu o Seminário I, a respeito dos impactos fiscais sobre a variação cambial, tema transcendental no Brasil, onde a flutuação do câmbio em tempos de crise pode provocar impactos relevantes sobre os contribuintes, painel em que palestrou Rodrigo Brunelli; e, finalmente, Lisa Worcman representou o Brasil no seminário da Young IFA.

Da nossa perspectiva, o seminário mais importante do ponto de vista filosófico dos novos rumos do direito tributário internacional foi o que abordou a questão dos direitos dos contribuintes diante de uma amplificação dos poderes das autoridades fiscais, visando o incremento da arrecadação, para fazer frente aos déficits fiscais provocados pela crise econômica de 2008. A caça às empresas multinacionais foi o caminho empreendido pelas administrações tributárias para assegurar o incremento da arrecadação e vem provocando um grande clima de insegurança jurídica global diante de uma série de providências legislativas antielisivas (as chamadas general anti-avoidance rules – GAARS), assentadas em conceitos indeterminado, tais como: opções apropriadas ou inapropriadas, motivação relevante, substância econômica, razões comerciais válidas, maneira significativa e propósito substancial.

O clima de incerteza provocado pela fluidez conceitual é apenas positivo para as autoridades fiscais, já que a cria um ambiente de temor e paralisia para os contribuintes, inibidos em buscar maior eficiência em seus negócios, mesmo que nos limites preestabelecidos pela lei. O círculo vicioso causado pela insegurança das normas gerais antielisivas foi bem apontado pelo alemão Christian Kaeser, chefe global de tributação da Siemens, que vê nas normas dessa natureza uma contradição intrínseca. Se tributos só podem ser criados por lei, norma abstrata e geral que, por força da tipicidade, deve ser exata, certa, precisa na criação da obrigação tributária, sempre haverá lacunas e não se pode admitir o preenchimento desses espaços de liberdade com pretensões tributárias baseadas em analogia ou conceitos indeterminados, sob pena de negar-se a existência da própria legalidade.

Esse círculo vicioso no Brasil tem sido ainda mais apavorante, pois deriva não de uma norma antielisiva do direito positivo, mas de acusações dirigidas pelas autoridades de fiscalização sem qualquer pudor ou limite. Bastou vislumbrar-se uma economia fiscal, que o contribuinte será acusado de simulador. O direito de planejar foi varrido do mapa em nome de considerações ideológicas, em nome de uma dita “moralidade”, que não deixa de ser uma negação do próprio Direito. Moral e direito são planos distintos, isso se aprende desde a primeira lição da universidade. Muito feliz, por isso, a citação de Oscar Wilde pelo palestrante canadense Michael O`Connor, vice-presidente sênior de tributação da Sun Life Financial, que usamos como epígrafe em nossa coluna. Moralidade é o que o fisco tem usado contra os contribuintes, para incutir o temor fiscal. Mas moralidade não está na lei, nem jamais poderá estar na aplicação da lei tributária. Moral é um estágio pré-legislativo, e assim deverá continuar sendo. A história revela que quando se aplica a lei em nome da moral destrói-se a democracia e, em seu lugar, viceja o autoritarismo.

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Não podemos deixar de registrar nosso caloroso aplauso ao belíssimo artigo de autoria do juiz federal Renato Lopes Becho intitulado “Juízes criando regras tributárias”, publicado no jornal Valor Econômico do dia 30/8. Recomendamos vivamente a leitura, pois há muito que se refletir sobre as graves consequências do enfraquecimento do legislativo sobre a atuação do judiciário em matéria tributária. Bom feriado a todos!

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