Por Álvaro Antônio da Silva Bahia*

Bissociação é um conceito muito conhecido e aplicado pelos estudiosos e especialistas dos temas Inovação e Criatividade.  Este termo foi criado por Arthur Koestler e lançado em seu livro ‘The Act of Creation’ (publicado em 1964) e descreve como a colisão entre dois universos/sistemas, completamente distintos e aparentemente sem nenhuma relação, podem interagir para proporcionarem uma grande inovação e benefícios para a sociedade.

Atualizando este conceito para uma expressão mais moderna e que foi trazida do mundo da música para o universo da tecnologia, podemos utilizar a palavra da língua inglesa: ‘Mash-up’, que dentro do contexto tecnológico dos atuais serviços disponibilizados a partir da Internet significa: “A combinação de dois aplicativos que podem se complementar e melhorar a oferta de determinado serviço”.

Foi a partir desse arcabouço teórico, que o ENCAT[1] (Encontro Nacional de Administradores e Coordenadores Tributários), apoiado pelo COMSEFAZ (Comitê de Secretários de Fazenda), identificou a oportunidade de utilizar as inovações trazidas pela Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) para, de forma integrada com outra inovação trazida pelo Banco Central do Brasil (BACEN), representada pela recém lançada Duplicata Eletrônica (D-e), suprir as necessidades de custeio das infraestruturas de autorização e processamento de NF-e das Secretarias de Fazenda (SEFAZ) e colaborar com as ações que vêm sendo adotadas pelas autoridades monetárias brasileiras, visando a redução do risco e das taxas de juros nas operações de crédito, especialmente para as relacionadas com antecipações de recebíveis, conhecidas como Desconto de Duplicatas. 

 

Qual o Problema a Ser Resolvido no Ambiente da NF-e?

A NF-e e os demais Documentos Fiscais Eletrônicos (DF-e) brasileiros são referências mundiais e conhecidos como ‘case’ de eficiência no ambiente da Administração Pública.  Esse sucesso vem aumentando exponencialmente o volume de emissões e aplicabilidades de uso dos DF-e para o ganho de produtividade e melhorias de processos do ‘core de negócios’ dos contribuintes e prestadores de serviços contábeis, além de contribuírem para o controle e incremento da arrecadação. Essa diversidade de benefícios provocou o aumento dos custos e necessidade contínua de investimentos nas infraestruturas de tecnologia das SEFAZ e dos ambientes mantidos pela Receita Federal do Brasil dentro do Projeto SPED  (Sistema Público de Escrituração Digital).

Felizmente, pelo lado da necessidade da aplicação de investimentos voltados para a ampliação e melhoria da infraestrutura de suporte a esses documentos eletrônicos, os diversos programas de financiamento voltados para a modernização das Administrações Tributárias dos estados, conduzidos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento através do PROFISCO[2], vêm suprindo esta parte da equação.

O grande desafio dos gestores tributários e de tecnologia das Administrações Tributárias está concentrado na outra parte da equação, relacionada ao orçamento para custeio da manutenção da infraestrutura do dia a dia dos DF-e (contratos de prestadores de serviço de TI, hardware, software, licenças, etc.), que em decorrência da crise fiscal por que passam os Estados e a União, vêm sendo reduzidos continuamente e provocando um desequilibro nas variáveis da equação da gestão financeira dos DF-e. 

Diante deste desafio e após meses de debates, a equipe de gestores e técnicos do ENCAT encontrou uma solução inspirada nos modernos conceitos do modelo de negócio das revolucionárias Plataformas Digitais[3] e seus processos de monetização, que foram devidamente customizados para se adequarem à realidade das Administrações Tributárias, de forma aderente aos princípios do sigilo fiscal e da Administração Pública.  

A partir desse contexto nasce a primeira Plataforma de Serviços Digitais implantada no âmbito da Administração Pública, denominada de “Plataforma de Consultas para Antecipações de Recebíveis dos Estados (PLAC Fat-e), que foi concebida e desenvolvida de forma integrada pelas SEFAZ, não só para gerar novas receitas para as Administrações Tributárias subsidiarem o custeio das infraestruturas de autorizações e processamentos dos DF-e, como para disponibilizar condições voltadas para a solução de problemas que afligem um segmento, que até poucos meses atrás não mantinha nenhum tipo de relação com as Sefaz e com o ENCAT.  

 

Qual o Problema a Ser Resolvido no Ambiente dos Segmentos Financeiro e de Fomento Comercial[4]?

Analisando o contexto atual do mercado de antecipações de recebíveis de Duplicatas Mercantis, “teoricamente”, estas operações representam uma ótima oportunidade para concessão de crédito barato, com baixo risco e custo operacional, uma vez que estas operações são lastreadas por vendas a prazo de mercadorias e serviços realizadas por empresas interessadas em alavancar capital de giro de curto prazo. No entanto, na prática, o mercado vem operando em nível inferior ao seu potencial, com altos custos e risco.

Diferentemente do mercado de ações onde qualquer pessoa, a partir do seu smartphone, pode utilizar um aplicativo para comprar e vender suas ações em um ambiente completamente digital, seguro e com uma infraestrutura que integra todos os atores envolvidos, as transações envolvendo desconto de duplicatas ainda são operadas de forma cartular (em papel), baseadas numa legislação do ano de 1968 (Lei das Duplicatas) e ocorrem em um ambiente com infraestrutura inadequada, onde existem grandes dificuldades para a verificação da autenticidade das NF-e apresentadas como lastro das operações.

Além da questão da avaliação da qualidade do lastro, no que se refere a autenticidade da operação de compra e venda mercantil ou da prestação do serviço, o mercado opera com diversos problemas estruturais e operacionais, envolvendo a relação sacador/sacado, pagamentos de títulos para credores indevidos, problemas com boletos bancários, frequentemente confundidos com as duplicatas, uso de uma mesma garantia em mais de uma instituição financeira, dificuldade para registro de gravames, protestos indevidos, etc..  Todos estes fatores elevam substancialmente os custos e o risco da operação, aumentando as taxas de juros e, principalmente, desencorajando as instituições a operarem de forma mais agressiva nessa modalidade de crédito.

 

Ações Desenvolvidas pelo Banco Central do Brasil (BACEN) e Demais Autoridades Monetárias

A tradicional Duplicata Cartular é um título de crédito criado exclusivamente no âmbito do direito brasileiro e tem seu lastro constituído a partir do contrato do compra e venda mercantil ou na prestação de serviço. Por ser um “título de crédito” pode ser negociada no mercado, a partir do seu endosso, de forma completamente independente do documento que lhe confere o lastro, a NF-e.  No entanto, esta originalidade singular vem sendo prejudicada pela antiguidade da legislação que trata das duplicatas (Lei 5.474/ de 18 de julho de 1968), infraestrutura inadequada e arcaicos processos de controle e gravame, que limitam a expansão dessa modalidade de crédito.

Foi justamente para “destravar” este mercado que O BACEN lançou a Política Pública BC+, que é composta por um conjunto de iniciativas voltadas para dar segurança jurídica e operacional ao segmento e impulsionar a oferta de crédito e a competição, a partir do pilar “Credito Mais Barato”, que dentre outras medidas instituiu ações para a implantação da “Duplicata Eletrônica” (D-e).

A D-e não significa apenas a representação digital da tradicional Duplicata Cartular, ela é constituída, também, de um conjunto de ações voltadas para melhorar a infraestrutura do mercado, modernizar a Lei das Duplicatas para o mundo digital e trazer este ativo financeiro para dentro dos Sistemas de Registro e Controle de Risco do BACEN. A Lei 13.775/2018 da D-e foi sancionada no dia 21/12/2018, após uma longa discussão nas casas legislativas da Câmera e do Senado Federal. 

 

A Bissociação entre os Segmentos Financeiro, de Fomento Comercial e as SEFAZ

A D-e representa uma grande inovação trazida pelo BACEN e Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que de forma similar a transformação proporcionada pela NF-e no ambiente das Administrações Tributárias, certamente, reduzirá grande parte das deficiências que afligem o mercado de antecipações de recebíveis.

Evidentemente este foi um grande passo, no entanto, como observadoras de um segmento distinto (Bissociação), mas que tem expertise na área de gestão de um dos lastros utilizados nas operações de antecipações de recebíveis, as SEFAZ perceberam que poderiam contribuir com as autoridades monetárias e o seguimento financeiro e de fomento comercial, considerando a seguinte análise de contexto:  De  que adianta termos um título de crédito digital, com todos requisitos de segurança e registro, se o mesmo está alicerçado por uma NF-e emitida para acobertar uma operação ficta, que esteja cancelada após a contratação da operação de crédito, ou que esteja acobertando uma operação que foi desfeita, seja por um sinistro no transporte, roubo da carga, ou até mesmo pelo não atendimento dos requisitos comercias definidos entre o emitente e o destinatário, que levaram a devolução total ou parcial da mercadoria?

Foi exatamente para tornar mais consistentes, não só as recém instituídas D-e, como as tradicionais Duplicatas Cartulares, que as SEFAZ criaram a Fatura Eletrônica (Fat-e), constituída a partir de um subconjunto restrito de informações da NF-e, eventos e registros de parcelas de vencimento de vendas a prazo, para possibilitar a sincronização digital e automática desses dois tipos de títulos de credito aos seus respectivos lastros de origem, as NF-e. 

Diante deste cenário e depois de 10 meses de testes e diversas reuniões com representantes do segmento de recebíveis, a partir de fevereiro/2019, tanto instituições que operam duplicatas cartulares ou escriturais, como: registradoras de ativos financeiros autorizadas pelo BACEN, bancos comerciais, bancos de desenvolvimento, bancos estaduais, empresas de factoring, FIDC, securitizadoras, fintechs, etc., já podem contratar os serviços da Plataforma de Consultas para Antecipações de Recebíveis dos Estados (PLAC Fat-e) para consultar e monitorar uma base instalada e crescente (a partir do momento que mais Sefaz estejam sincronizadas) de mais 100 milhões de Fat-e, que totalizam um montante de R$ 486 bilhões de vendas  a prazo.    

A PLAC Fat-e dos Estados opera em um ambiente centralizado das SEFAZ (www.placsvba.ba.gov.br) e atende exclusivamente o segmento financeiro e de fomento comercial. Implementada na Sefaz Virtual do Estado da Bahia (SVBA), nasce avalizada pela exitosa experiência das SEFAZ na implantação da Sefaz Virtual do Rio Grande do Sul (SVRS), que autoriza DF-e para diversas SEFAZ e está lastreada por um arcabouço jurídico constituído através do Acordo de Cooperação Técnica 1/2018, assinado por 23 Secretarias de Fazenda, além da Lei 22.940/2018, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, que autorizou a Sefaz/BA a prestar esta modalidade de serviço centralizado para as demais SEFAZ. 

Além da indispensável verificação da consistência do lastro de forma automatizada, rápida e segura, antes e durante o processo de negociação/contratação, os serviços disponibilizados possibilitam o monitoramento e sincronismo automático do título de crédito com a NF-e e seus eventos, durante todo o prazo de vigência da operação, de forma independente para cada parcela de vencimento.  A partir de notificações enviadas para a instituição financeira titular e vinculada a operação de crédito, é possível saber se a mercadoria saiu do estabelecimento do vendedor, circulou, chegou no estado de destino e se foi entregue ao sacado.  

Outro diferencial dos serviços prestados, reside no fato das informações contidas no arquivo XML da Fat-e e seus respectivos eventos serem extraídos, assinados e criptografados por um Hash Code da Sefaz Autorizadora da NF-e, o que garante a autoria e o não repúdio.  Estas características são extremamente importantes para trazer maior segurança e confiança a esta nova realidade digital estabelecida pelo BACEN e não podem coexistir com processos de validação, conciliação e auditoria de lastros baseados em raspagens de páginas obtidas através da Internet, atualmente vigentes.

Diante de todos esses fatos, podemos concluir que o mundo digital e a economia colaborativa agora integram o mercado de antecipações de recebíveis, que passa a operar num cenário com confiança nas transações digitais, a partir de uma infraestrutura adequada e voltada para facilitar o alcance dos objetivos traçados pelo BACEN. Ganham os agentes operadores de recebíveis, as autoridades monetárias, as administrações tributárias e, principalmente, as pequenas e médias empresas que passarão a ter acesso a uma maior oferta de capital de giro com menores risco e taxas de juros. 

[1] ENCAT – Órgão de assessoria do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), reconhecido pelo Protocolo ICMS No. 54/2004 e que tem como objetivo estimular a cooperação fiscal entre as SEFAZ para o desenvolvimento de projetos inovadores, como a NF-e e demais DF-e.

[2] PROFISCO – Linha de crédito condicional do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), denominada Programa de Apoio à Gestão e Integração dos Fiscos no Brasil, aprovada em novembro de 2008, com a finalidade de modernizar as Administrações Tributárias dos Estados e Distrito Federal.

[3] Plataforma -  Novo modelo de negócio que usa a tecnologia para conectar pessoas, organizações e recursos em um sistema interativo, no qual podem ser criadas e trocadas grandes quantidades de informações e valor.

[4] Fomento Comercial – Para facilitar a descrição dos atores envolvidos em operações de antecipações de recebíveis, quando nos referimos ao segmento de fomento comercial, além das empresas de factoring, englobamos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), Securitizadoras e Fintechs que atuam no segmento.

(*) Álvaro Antônio da Silva Bahia é Auditor Fiscal da Secretaria de Fazenda do Estado da Bahia. Coordenador Técnico do Encat e Líder Nacional do Sistema NF-e. Especialista em processos de inovação e criatividade. Exfuncionário do Banco Econômico S/A. Professor de MBA na BlueTax.

Fonte: http://blog.bluetax.com.br/profiles/blogs/como-a-nf-e-e-a-duplicata-eletronica-contribuirao-para-a-reducao-

Enviar-me um e-mail quando as pessoas deixarem os seus comentários –

Para adicionar comentários, você deve ser membro de Blog da BlueTax - Conteúdos Validados por Especialistas.

Join Blog da BlueTax - Conteúdos Validados por Especialistas